Música e encanto em Atravessando a ponte – O som de Istambul

“Quando você chega a um lugar e deseja conhecer sua cultura, o quão profunda ou superficial ela é, então escute a música tocada lá. Você aprenderá tudo sobre esse lugar”. A frase, cujo autor é Confúcio, sintetiza belamente o percurso empreendido em Atravessando a ponte – O som de Istambul (Crossing the bridge: the sound of Istanbul, 2005), documentário de Fatih Akin sobre a cena musical turca. Com base na necessidade de descobrir a essência de uma cidade multifacetada cultural e geograficamente, Alexander Hacke, integrante da banda alemã Einstürzende Neubauten, passeia por ruas, casas, vielas e bares, e carrega o espectador consigo em uma mistura de ficção com realidade, elementos cuja proximidade praticamente impede sua separação, evidenciada por esse e outros filmes. Como fica bem claro não apenas na sinopse, mas também logo nos primeiros minutos de sua viagem, o músico é amante dos experimentalismos sonoros, e se delicia com cada nova descoberta que faz em sua busca pela cor local de Istambul.



A diversidade do lugar salta aos olhos, e a música acaba sendo a ponta de um profundo iceberg que contém etnias, visões de mundo e expectativas diversas, compondo um mosaico capaz de despertar algum traço de identificação com, pelo menos, uma de suas partes. A ideia do documentário surgiu enquanto Akin rodava seu filme anterior, o pungente Contra a parede (Gegen die Wand, 2004), cuja trilha sonora teve participação direta de Hacke, e resultou em uma coletânea de músicas doloridas e inesquecíveis, perfeitamente encaixadas à narrativa proposta ali. Diante do sucesso da parceria entre ambos naquele filme, começaram os trabalhos para tirar o documentário do papel, e o resultado é um fascinante estudo informal sobre um assunto que causa comoção geral. A música, com seu poder retumbante, suscita muitos tipos de sentimentos e, na seara heterogênea de Istambul, algum deles pode ser o do espectador diante da tela. Na metrópole, tudo parece cabível e, quando não o é a princípio, com o tempo vai sendo incorporado.

A propósito de Akin, existem dois aspectos principais que saltam aos olhos em seus filmes: o roteiro e a trilha sonora. Mais do que qualquer outra questão, o talento do cineasta se revela em sua porção escritor e na escolha criteriosa e magnífica que ele faz das canções que pontuam seus filmes. Com Atravessando a ponte – O som de Istambul, não é diferente. Akin nos coloca como acompanhantes de Hacke, como se estivéssemos sentados ao seu lado no banco do carona de um carro que pode nos levar para uma infinidade de lugares. E esse percurso informal torna a viagem ainda mais interessante, com o roteiro livre de amarras, que deixa fluir o que há de melhor no objeto de análise. Assim como o músico, ficamos maravilhados, encantados ou surpresos com o que vai surgindo pelo caminho e, ainda que nem todos os estilos sejam agradáveis a nós, cada um deles é a expressão do sentimento de humanidade que nos une como um só. É exatamente dessa forma que Hacke se posiciona diante do que descobre, em sua condição temporária de flanêur pela multiplicidade citadina.

O documentário também não deixa de ser um encontro de Akin com suas próprias raízes. Afinal, ele é filho de imigrantes turcos nascido na Alemanha, e demonstra especial interesse por mapear as condições em que vivem os seus semelhantes ao longo de sua filmografia, de que são exemplos o já citado Contra a parede e o multipolar Do outro lado (Auf der Anderen Seite, 2007). É como se, a cada novo longa, ele procurasse refinar sua observação, elegendo pessoas do cotidiano e iluminando seus rostos e seus caminhos para conhecer um pouco mais delas e entender quem elas são. Dessa forma, ele também conhece mais dele mesmo, como quem olha um espelho cujo reflexo é um tanto turvo, mas capaz de revelar um pouco de quem olha para ele. Essa procura por sua própria identidade é compartilhada com o público de forma brilhante e arrebatadora, fazendo dele um dos diretores mais importantes de seu tempo e de seu país. Não foi fácil, porém, realizar o documentário. Ele esbarrou, por exemplo, na resistência inicial de uma das cantoras em participar do filme. Diante do conflito, Akin fez amizade com ela e os dois se tornaram muito próximos, a ponto de ela concordar não só em estar no filme como em ser uma das responsáveis por sua trilha.



As imagens e os sons captados pela câmera curiosa do diretor são puro deleite e encanto, e podem deixar no público a vontade de pegar o primeiro avião com destino a Istambul e conhecer de perto os artistas retratados no documentário, bem como ver ao vivo as suas apresentações musicais. E, de quebra, também somos impelidos a querer contemplar pessoalmente a arquitetura e a geografia de uma cidade cuja essência é a diversidade, e que pertence a um país tão vasto em cultura e história que chega a ocupar dois continentes distintos. A ponte, presente no título da obra, é a própria cidade, protagonista absoluta de um percurso deambulatório repleto de insígnias dessa urbe mágica que resultam em fina iguaria para todo os sentidos cinéfilos, sobretudo a audição. Em última instância, o documentário é a onda que arrasta e conduz a um passeio sem precedentes por um baú de grandes descobertas.

Comentários

Postagens mais visitadas