O silêncio: véus que caem com a clausura prolongada


Contemporâneos por um longo tempo, Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni dialogaram profundamente com suas respectivas trilogias, concebidas com uma quase simultaneidade que beira o assustador. Enquanto este se ocupou, no começo dos anos 60, de elaborar sua Trilogia da Incomunicabilidade, aquele se debruçou sobre a intensa tarefa de criar a Trilogia do Silêncio. Os resultados de ambos os empreendimentos são acachapantes, mesmo tendo transcorrido mais de cinco décadas do começo dos projetos. No caso de Bergman, tudo começou com Através de um espelho (Såsom i en spegel, 1961) prosseguiu com Luz de inverno (Nattvardsgästerna, 1962) e se findou com O silêncio (Tystnaden, 1963). Oriundos da gélida Suécia, os filmes nos tocam de modo singular, falando de medos, modos e anseios que nada parece sublimar de fato.

O ponto de partida desta última parte é a viagem de Esther (Ingrid Thulin) e Anna (Gunnel Lindblom), duas irmãs, em um país estrangeiro, com o filho de uma delas. Antes de retornar à sua terra natal, elas prolongam a permanência em uma das paradas do caminho, hospedando-se em um hotel barato. O tempo, ali, custa passar. As dificuldades de comunicação permeiam o relacionamento entre elas, algo que vai se delineando durante a projeção do filme. O silêncio presente no título reina entre elas, e suas conversas são pautadas por ligeiras trocas de acusações. Quase subliminarmente, entende-se que haja um componente de incesto na convivência entre ambas, névoa que pode pairar sobre toda a sessão ou se dissipar de acordo com o espectador, mas que nunca é confirmada ou negada explicitamente.

A exemplo dos filmes anteriores da tríade, bem como de vários outros que compõem a carreira do realizador sueco, O silêncio é um filme muito incômodo, que olha com lente de aumento para assuntos algo proibidos em se tratando de certas ocasiões. As facetas mais nefastas de homem, devidamente encobertas pelo bem da convivência, são desnudadas corajosamente por Bergman, em meio a um cenário claustrofóbico, que evoca a ideia de prisão e faz resfolegar o espectador. Cortando os instantes de contemplação, estão diálogos dilaceradores, que amplificam a potência dramática de um filme que pode afugentar um público não habituado a densos estudos dos meandros da natureza humana. O epíteto de “cineasta da alma” cai muito bem para ele, por sua capacidade de lançar fora o véu da encenação e o verniz da simulação. Ali estão Anna e Esther, nuas e cruas. E essa nudez e essa crueza não são nada palatáveis.



O silêncio também marca uma das várias colaborações entre Ingmar Bergman e Sven Nykvist, o diretor de fotografia que tanto soube traduzir para o campo imagético as aspirações do realizador. Em um preto e branco deslumbrante e atordoante, ele examina com traços de penumbra a agonia dominante no quarto de hotel em que uma das irmãs fica confinada, assim como nas ruas superpovoadas e nos estabelecimentos que a outra frequenta à procura de um êxtase erótico que equivale à sua busca pela própria identidade perdida. É nesse confronto penetrante com o público que o filme exala toda a sua força e pungência, sendo incabível permanecer indiferente a ele. A bem da verdade, é difícil chegar ao final da sessão, por mais que ele não ultrapasse sequer os 90 minutos de duração, por todos os aspectos que já foram assinalados até aqui. Cada fotograma pesa por sua gravidade, e Bergman se furta de qualquer tentativa de alívio cômico. Não há concessões ao espectador. É como se estivéssemos diante de um daqueles espelhos de parques de diversões antigos que mostram deformações que, em última instância, nada mais são do que variações de nós mesmos, de uma distopia que está contida em nós.

Antes de mais nada, portanto, O silêncio é um filme que flerta com as loucuras individuais e compartilhadas, exalando uma aura vigorosa e pessimista que, se não é de todo digna de aceitação e concordância, representa com grande verossimilhança algumas das nossas podridões. O longa surgiu num dos primeiros anos de uma década efervescente, que chegaria perto de seu fim com uma manifestação explosiva de uma juventude inquieta e inquiridora. Aqui, Bergman já dava seu terceiro passo na diálise de uma gama de sentimentos que pairavam sobre sua própria existência, e que ele escolheu apresentar para uma plateia a cada novo trabalho. Pela via do incômodo, ele leva a sua proposta a cabo, e encerra a Trilogia do Silêncio com questões e imagens muito longe de fenecer.

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