QUINTETO DE OURO - FILMES DE 1998

A exemplo do que havia feito ano passado, em que retrocedi no tempo para revisitar um ano e listar meus cinco preferidos, este ano decidi fazer o mesmo, com o detalhe de que, dessa vez, a volta no tempo é para um ano mais distante. Lá se vão 20 anos desde que vivemos 1998, e a sensação é que a contagem cronológica não bate com a biológica. Como assim já faz 20 anos que eu era uma criança no ensino fundamental que ainda não ligava quase nada para filmes e hoje sou um cinéfilo roxo? Pois é, meu caros leitores... O tempo não para! E como sou muito saudosista e apaixonado por idas e vindas no tempo, compartilho com vocês meu quinteto de preferidos de 1998. Mesmo porque, o cinema é uma arte sem prazo de validade, e sempre será possível olhar para trás em busca de bons filmes. 

É claro que, como em toda lista, ainda mais uma que só comporta cinco eleitos, títulos preciosos acabaram ficando de fora, parte deles porque simplesmente não couberam e outra parte porque ainda não assisti a eles, afinal um bom amante do cinema está sempre endividado: a relação de filmes para conferir não diminui nunca, mas existe débito mais gostoso? Quem dera a expressão ficar no vermelho fosse aplicável somente ao caso de se estar com muitos filmes à espera! Divagações à parte, o ano de 1998 trouxe obras importantes para as telas, e uma rápida busca para chegar algumas delas me fez chegar a nomes de realizadores como Terrence Malick e seu Além da linha vermelha - cotadíssimo para esse artigo - Walter Salles com o emocionante Central do Brasil, Thomas Vinterberg e o polêmico Festa de família, ícone do Dogma 95, além de Brian De Palma dando um bom papel a Nicolas Cage em Olhos de serpente e Todd Haynes visitando a cena do glam rock em Velvet goldmine. Esses são apenas alguns dos exemplares de um ano pouco comentado, mas com motivos de sobra para tal. Vamos então aos meus eleitos em ordem alfabética!

1. Conto de outono (Conte d'automneEric Rohmer)


Último representante da tetralogia de contos das quatro estações do ano pensada por Rohmer, o longa não economiza no falatório, característica marcante do realizador falecido em 2010, que também assinava o roteiro de suas produções. Aqui, uma mulher comum e solteirona é surpreendida pela amiga, que coloca um anúncio no jornal na tentativa de lhe arranjar um marido. É então que aparece um simpático homem, que demonstra genuíno interesse na "oferta", mas um outro alguém também fica à sua volta, e a partir dessa premissa básica Rohmer entretece sua trama de fios cotidianos, como tantas outras que se encontram em andamento por aí. Numa obra como a sua, pouco importa sobre o que ela é, mas como ela é sobre o que é. E já dizia a crítica com muita propriedade: foi com as palavras que o mestre Rohmer sempre nos conquistou. Em Conto de outono ele retoma a parceria com uma de suas atrizes mais queridas: Béatrice Roman volta à posição de protagonista, na qual tinha estado mais de uma década antes em Um casamento perfeito (Le beau marriage, 1982), e se mostra perfeitamente encaixada ao modus operandi rohmeriano.

2. A eternidade e um dia (Mia aioniotita kai mia mera, Theo Angelopoulos)


Longas jornadas no espaço e no tempo são uma constante no cinema de Angelopoulos, mas um grande artista que já nos deixou, mas cuja obra segue intacta para visitas e revisitas. O mote desse belo conto são as lembranças do escritor Alexandre (Bruno Ganz), evocadas depois que ele encontra uma carta da esposa, na qual ela relata um dia de verão passado 30 anos antes. É também com a leitura da carta que ele percebe os dias que deixou de viver enquanto estava mergulhado na palavra, e lhe vem o desejo de ter de volta ao menos alguns desses dias, mas, como todos sabemos, o tempo caminha apenas para frente. Porém, no roteiro de Angelopoulos, assinado com Tonino Guerra e Petros Markaris, parece haver uma chance tardia de viver momentos importantes. O caminho de Alexandre cruza com o de um garoto albanês que precisa atravessar a fronteira da Grécia, e a amizade entre eles ganha contornos singelos e emocionantes. O poliglota Ganz, alemão de nascimento, dessa vez atua em grego, mostrando que é o maior ator vivo no que se refere à variedade idiomática de papéis. Devido à sua temática, o longa faz uma dobradinha perfeita com O porto (Le havre, 2011), do querido Aki Kaurismäki, valendo a pena uma sessão de ambos em sequência.

3. Um plano simples (A simple plan, Sam Raimi)


Antes de dirigir a trilogia original de Homem-Aranha, Sam Raimi já tinha mais de 20 nos de carreira como ator e cineasta, e seus filmes desse período ainda seguem desconhecidos para a maioria do público, sejam cinéfilos ou não. Eu mesmo até hoje só conferi este exemplar da década de 90 de sua filmografia, e colocá-lo neste Quinteto é uma forma de chamar a atenção para ele, revelando o quanto é subestimado. O tal plano do título envolve dois irmãos - Hank (Bill Paxton) e Jacob (Billy Bob Thornton) -, que encontram os destroços de um navio cobertos de neve em plena floresta. No interior da aeronave, o piloto sem vida e uma mochila com quatro milhões de dólares. Descobrir a ideia que eles têm depois de tal detalhe é como juntar dois e dois. O problema é que a tal simplicidade do plano estava apenas na teoria, e Raimi aponta sua narrativa para um rumo degringolante - para os irmãos, não enquanto cinema. O destaque da dupla é Thornton, ator de muitos recursos expressivos, ele também subestimado por crítica e plateia. É interessante notar que a neve constante na história também se presta a uma leitura metafórica: os irmãos entram no meio de uma avalanche de problemas.

4. Quem vai ficar com Mary? (There's something about Mary, Bobby e Peter Farrelly)


Gênero esnobado nas premiações, a comédia tem vez no meu Quinteto de Ouro. Com a assinatura dos irmãos Farrelly, o resultado pode oscilar entre o fraco e o ótimo, e aqui a tendência é muito mais para o segundo. Reunindo escatologia e sentimento, uma combinação bastante inusitada, ele conta a jornada de encontros e desencontros do tímido e estabanado Ted (Ben Stiller), que perdeu a chance de sair com Mary (Cameron Diaz) na época do baile do colégio. Os anos passam e o coração dele ainda está ocupado por ela, daí a ideia de contratar um detetive (Matt Dillon) para saber seu paradeiro - mas o cara se interessa por Mary também. Para completar, ainda surge o ex-namorado da garota, e a ciranda de confusões está armada. Até hoje, Quem vai ficar com Mary? é celebrado como um dos mais divertidos filmes de comédia, e algumas cenas se tornaram antológicas, como a do topete de Mary feito com sêmen, o que dá uma dimensão do nível de humor politicamente incorreto, algo impensável para o contexto dos anos 2010. O mais valioso nos filmes dos Farrelly é o subtexto carinhoso (repare na canção tema), mesmo que ele muitas vezes possa estar soterrado sob uma pá de situações bizarras.

5. O show de Truman - O show da vida (The Truman show, Peter Weir)


Precursor da era dos reality shows que tomaram conta da televisão no alvorecer dos anos 2000 - e seguem firmes e fortes de algum modo até hoje -, o filme de Peter Weir, australiano setentão, lança um questionamento em meio a tantos outros: vale tudo pela audiência? O personagem do título seria um homem de vida absolutamente comum se não fosse por um importante detalhe: seu cotidiano é mostrado para milhões de telespectadores em cadeia nacional desde que ele veio ao mundo. Os amigos, os amores, os ganhos e perdas são parte do roteiro de um programa que vem se mantendo no ar graças aos elevados índices de audiência, revelando o tamanho do interesse das pessoas pela vida alheia. Jim Carrey dá vida a Truman sem lançar mão das caras e bocas com que deita e rola na comédia, trilhando um caminho de contenção e apresentando uma faceta que poucos diretores até hoje lhe deram a chance de exercitar - depois dessa, a outra chance foi em Brilho eterno de uma mente sem lembranças (Eternal sunshine of the spotless mind, 2004). A ideia do programa fez escola em alguma medida, e hoje os Trumans, quase todos sem qualquer brilho e profundidade, estão povoando as redes de televisão ano após ano. 

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