O outro lado da esperança e o humanismo sutilmente inscrito

A cada filme, Aki Kaurismäki reafirma sua vocação humanista, retratando histórias de indivíduos comuns precisando sobreviver em um mundo tantas vezes hostil, mas onde ainda se encontram centelhas de gentileza e solidariedade pontilhadas por aí. Parte de mais uma trilogia iniciada com O porto (Le Havre, 2011), O outro lado da esperança (Toivon tuolla puolen, 2017) também é um olhar do finlandês para a urgente questão imigratória, que tanto convulsiona a Europa e levanta a poeira da xenofobia e do racismo, só para ficar em duas reações adversas entre os nativos do continente. E, novamente, ele focaliza as exceções ao que parece a regra não somente lá, mas em outras partes. Não sem um toque de nonsense, é bom que se diga, e aí está umas das delícias do modus operandi kaurismäkiano. 

Inicialmente desencontrados, Wikhström (Sakari Kuosmanen) e Khaled (Sherwan Haji) entram em cena sob essa ótica inusitada que o realizador gosta de cultivar. O primeiro está deixando a esposa sem qualquer fala, apenas lhe entregando o velho símbolo da união de ambos: uma aliança, que ele joga sobre a mesa e ela sequer tenta segurar. Não se sabe ao certo o que causou a decisão, mas ela parece, àquela altura, irreversível. O segundo aparece enegrecido após a emersão de uma montanha de carvão mineral, e só mais adiante a razão para ele ter estado ali é contada: ele é um imigrante sírio em busca de asilo político que foi parar na Finlândia depois que não conseguiu sair de um navio que rumava àquele país. A essa altura, O outro lado da esperança é um díptico sobre dois homens em processo de reconstrução, e as marcas que consagraram Kaurismäki e lhe tornam um cineasta inconfundível aos primeiros minutos desfilam pela tela. 

Além do já citado elemento nonsense, seus atores parecem não se esforçar muito para interpretar, digamos assim. O roteiro emulsiona possíveis gorduras sentimentais vai direto ao ponto, mas engana-se quem pensa que o resultado é a frieza. A estratégia remete a um de seus mentores, um certo Robert Bresson, de longas como O batedor de carteiras (Pickpocket, 1959) e A grande testemunha (Au hasard Balthazar, 1966), mas as semelhanças com a obra do francês não vão muito além de tal detalhe. Kaurismäki se filia bem mais a Yasujiro Ozu, e o próprio diretor já declarou que pretende fazer vários filmes ainda para então se conformar que nunca vai chegar aos pés do realizador japonês, cuja filmografia pode ser "acusada" de monotemática sob um olhar meramente sinóptico. Porém, como vários outros medalhões da realização cinematográfica, Ozu conseguia pintar com novas tonalidades seu tema preferido: a filha que adia sua partida de casa para se devotar ao pai que não se viraria muito bem com sua ausência. É a mesma acusação que se faz contra Woody Allen e seus recortes sobre neuróticos sem rumo. 


Dito isso, é de uma modéstia exagerada o finlandês afirmar que não é tão bom quanto Ozu: cada qual com seu estilo e temática, eles presenteiam seu público com um humanismo sempre bem-vindo. O outro lado da esperança é um filme de seu tempo, ao mesmo tempo em que reforça valores atemporais aliado a um conjunto cênico minimalista e às comentadas interpretações comedidas. Ao escolher abordar os fluxos migratórios, ele não só coloca o dedo numa ferida aberta (por força de expressão, uma vez que é descabido falar em ferida tanto literal quanto figuradamente), como também lembra que é na ajuda mútua que o mundo gira melhor, sem perder de vista o senso de humor. Para ilustrá-lo, dois exemplos: o desastrado cruzamento das trajetórias de Wikhström e Khaled, que começa com uns sopapos um no outro para, na cena seguinte, o dono do restaurante acolher o sírio com um prato de comida; e o jantar japonês (alguém pensou em Ozu?) improvisado de última hora para receber clientes daquela nação, com todos os empregados vestidos a caráter. Situações que geram um sorriso discreto, assim como Wes Anderson costuma fazer em suas comédias.

Kaurismäki foi premiado com o Urso de Prata de direção no Festival de Berlim, no qual competiu com nomes como Agnieska Holland, Sebastián Lelio e Calin Peter Netzer. Por incrível que pareça, nenhum filme seu tinha sido selecionado para o Festival até então, e nada mais justo do que um reconhecimento desses para seu trabalho, merecido mesmo, não um daqueles casos de premiação tardia pelo conjunto da obra. Ele é uma voz dissonante entre seus conterrâneos, que estigmatizam os estrangeiros e, por vezes, chegam à agressão física, e notícias de 2016 apontam o surgimento de patrulhas anti-imigrantes, formadas por civis que argumentam que os refugiados elevam os índices de criminalidade. Autorreferidos como Soldados de Odin, entidade mitológica associada à guerra, eles também existem nas vizinhas Suécia, Dinamarca e Noruega. A princípio, o cineasta faria uma trilogia sobre cidades portuárias, mas mudou de ideia e agora está tratando de refugiados, uma decisão perfeitamente sintonizada com a exigência de um tempo em que mesmo fatos e atitudes óbvias precisam ser defendidos.

9/10

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