Recomeçando a duras penas em Dois dias, uma noite

Coloque-se na situação de Sandra (Marion Cotillard): seu chefe a informou de que há uma condição importante para que ela mantenha seu emprego na fábrica, que é convencer seus colegas a desistir de um bônus prometido por ele a todos. Agora, imagine-se na pele desses colegas, confrontados com o pedido dessa mulher para abrir mão de uma soma que vem ao encontro de boa parte de suas necessidades financeiras. É nesse impasse que Jean-Pierre e Luc Dardenne colocam o espectador de Dois dias, uma noite (Deux jours, une nuit, 2014), mais um sopro de vitalidade na filmografia dos irmãos belgas. O roteiro, também a cargo da dupla, questiona o individualismo reinante nos dias atuais e o contrasta com as fagulhas de solidariedade que se acendem no caminho da protagonista, ilustrando a característica mescla entre dureza e ternura dos diretores. 

O título se refere ao tempo que Sandra tem para visitar cada um dos funcionários que votou pelo bônus e convencê-los a mudar de ideia a esse respeito. Inicialmente relutante, por ainda sentir alguns efeitos de um quadro depressivo do qual vinha se tratando até pouco antes do episódio, ela retira forças de onde acreditava não ter e conta com o auxílio do esposo Manu (Fabrizio Rongione, habitué da dupla que só perde em frequência de colaborações para Jérémie Renier), que também segura as pontas no cuidado com os filhos do casal. Está posta a estrutura minimalista do filme que, por vezes, soa repetitiva, mas pela própria natureza da tarefa. A cada vez que chega à casa de um colega, expõe a mesma questão e se expressa de modo parecido. Ela conseguiu, com o apoio de uma amiga, a permissão do chefe para refazer a votação e garantir sua vaga caso a maioria desista do tal bônus.

As opiniões e reações dos colegas se dividem entre compreensivas e arredias. Aqueles que negam voltar atrás em sua decisão pela bonificação têm justificativas na ponta da língua para tal e elas soam sempre legítimas. Ao mesmo tempo, parte o coração ver Sandra tão vulnerável, tão dependente de um ato de bondade alheia, apegando-se ao seu emprego, sabidamente, um signo importante da dignidade alheia na sociedade do trabalho. Em muitas línguas, aliás, os falantes indicam a sua profissão usando o verbo ser, como é o caso do português e do inglês, gerando frases do tipo “Eu sou arquiteto”, ao passo que no italiano, por exemplo, a mesma ideia é transmitida pelo verbo fazer, o que sugere que uma profissão é feita e pode ser algo temporário. Nas línguas em que se usa o verbo ser, é como parte da natureza de uma pessoa fosse sua profissão. Nesse sentido, Dois Dias, Uma Noite também se abre a mais possibilidades de refletir sobre o nosso mundo, repensando até mesmo nossas escolhas vocabulares, não obstante nossas limitações linguísticas.


Avessos ao sentimentalismo barato, os Dardenne preferem conduzir a trama com certa dose de assepsia, mas não o bastante para torná-la gélida, embora possa haver detratores que enxerguem frieza em suas obras. Aqui, não é diferente, e os realizadores ainda são muito felizes em sua primeira parceria com Cotillard, atriz extraordinária que capta belamente os matizes dramáticos de sua personagem, entregando o que pode ser considerada, sem medo de exagero, uma de suas melhores performances desde a visceral transformação física e psicológica para encarnar o papel-título de Piaf – Um hino ao amor (La môme, 2007). A maior armadilha de Sandra era cair na vitimização, mas Cotillard é tarimbada o suficiente para escapar dela, e diz muito mais com os olhos do que com a boca, já que sua agonia por aquela peregrinação de porta em porta é represada e, por isso, acaba mais visível através de suas íris azuis. Nem mesmo a Academia poderia resistir a ela, e lhe tascou uma indicação ao Oscar de melhor atriz, a segunda em um intervalo de 8 anos.

Os Dardenne também não costumam pontuar as trajetórias de seus personagens com trilhas sonoras, e essa escolha pelo silêncio quase ininterrupto ao fundo das ações, costumeiramente, ajuda a produzir o efeito lacerativo de suas obras. O mesmo pode ser verificado em Dois dias, uma noite: há uma rara passagem musicada em que se vê uma expressão de alegria em Sandra, depois de mais uma visita a um colega. O detalhe irônico da cena é que a canção tem uma letra bastante pesada e pessimista, levando Manu a fazer menção de trocar a estação do rádio, mas Sandra diz que ouvir aquilo não lhe fará mal. E, mais uma vez, está tudo em seus olhos, que, a propósito, estão entre os mais expressivos do Cinema, fato atestável em outros trabalhos da atriz, como a Ewa Cybulski de Era uma vez em Nova York (The immigrant, 2013), só para citar um entre tantos exemplos acumulados ao longo dos últimos anos. A essa altura, a plateia já deverá estar ciente de que isso não é Hollywood, e os que estão familiarizados com os diretores podem esperar um epílogo refratário às ideias mais óbvias de triunfo pessoal e felicidade.

8.5

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