Relatos selvagens e a vingança levada ao limite

Charge e denúncia são dois parceiros que funcionam muito bem juntos. Uma forte comprovação dessa tese pode ser encontrada em Relatos selvagens (Relatos salvajes, 2014), uma vigorosa compilação de episódios que caminham na linha tênue entre o absurdo e o desespero ao mostrar indivíduos comuns no limite da sanidade. Nas seis histórias, carregadas de humor negro, o diretor e roteirista Damián Szifrón expõe as síndromes de um século violento, jamais circunscrito apenas à realidade argentina. Portanto, a posição geográfica em que os enredos transcorrem é mero detalhe. Do primeiro ao último fotograma, somos testemunhas de uma reunião de estranhos conectados em um voo, um assassinato pós-surto, uma briga de trânsito que, literalmente, pega fogo, um trabalhador se vingando do sistema, um intricado acordo com desdobramento trágico e uma descoberta de traição do noivo em plena festa de casamento. 

Um clichê das críticas sobre filmes estruturados em segmentos é apontar sua irregularidade, mas esse não é absolutamente o caso aqui. Todas as tramas exibem grande força e são capazes de deixar o espectador suficientemente entretido com o que vai acontecer logo a seguir. Szifrón tem total controle da situação, sabendo exatamente aonde quer chegar e levando o público consigo como se este fosse um passageiro de um carro em alta velocidade. Não há momentos de mornidão. Cada sequência se encadeia organicamente na outra e explora as várias possibilidades que o sentimento de vingança pode oferecer, deixando o espectador à vontade para aplicar o seu juízo de valor particular sobre o que está acontecendo diante dos seus olhos. 

A vingança, afinal, é a mola propulsora das ações de Relatos selvagens, quase sempre praticadas pelo alvo de alguma perda anterior que, supostamente, a motivaria. O roteiro mostra que, em se tratando de um sentimento tão primitivo – que o homem precisa refrear a maior parte do tempo a fim de garantir o bem estar individual e social -, as reações podem ser as mais bárbaras possíveis.  O que dizer dos motoristas cujos caminhos se cruzam em uma estrada deserta e desatam a revidar a violência com mais violência até o limite? E do engenheiro que, cansado de tantas multas, decide usar suas habilidades profissionais para dar o troco no corrupto esquema de multas de trânsito? São questionamentos lançados na cara pelas lentes de Szifrón, que fundiu as histórias em um só filme por acaso, depois de se dar conta de que cada uma, escrita independentemente, tinha conexão com a outra e poderia ser incluída no mesmo eixo temático. 


Talvez o chamariz mais poderoso da antologia seja presença de Ricardo Darín no elenco. Ele é o engenheiro saturado de perder dinheiro para o governo do quarto segmento e mostra o quanto a contiguidade entre Brasil e Argentina se encontra também na configuração legal estarrecedora. Ver seu personagem lidando com os insuportáveis “servidores públicos” para explicar a injustiça que sofreu ao ter o carro removido por um guincho gera, inevitavelmente, um sentimento de indignação, seja por já ter enfrentado a mesma situação, seja por saber de alguém que já a tenha enfrentado. Mas Darín não é o único talentoso em cena. Seria injustiça não destacar os trabalhos dos demais envolvidos, cujos rostos não vistos facilmente por aqui injetam grande frescor aos seus desempenhos. É gente comum, escrita com verossimilhança, inclusive nas passagens em que o teor algo surrealista se eleva. Mesmo porque, entre a reação imaginada diante de uma situação hipotética e a que se tem quando a situação se concretiza efetivamente, pode haver um enorme fosso. Em outras palavras, mesmo quando parece caminhar em direção a uma abordagem rocambolesca, Szifrón não perde de vista a possibilidade de que tais cenas pudessem se repetir (ou já tenham ocorrido de forma idêntica ou similar) na vida real.

Relatos selvagens foi devidamente inserido na rota das premiações: ganhou espaço em Cannes, integrando a mostra competitiva, e  emergiu como o representante argentino para a categoria de filme estrangeiro do Oscar. Também fez sucesso com a plateia conterrânea, levando mais de 3 milhões de espectadores ao cinema, marca bastante expressiva no país, de mais de 41 milhões de habitantes. Nos créditos de produção, ainda figuram os nomes dos irmãos Almodóvar, conquistados pelo toque estapafúrdio impresso às histórias, algumas das quais remetem ao cinema de Álex de la Iglesia - de filmes como A comunidade (La comunidad, 2000) e Crime ferpeito (Crímen ferpecto, 2004). Para além do entretenimento de alta qualidade, o longa de Szifrón - que já assinou títulos como Tempo de valentes (Tiempo de valientes, 2005) - fomenta discussões de ordem sociológica, indicando o quanto vários estamos à beira de um colapso e outros tantos já entornaram o caldo faz tempo.

9/10

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