O serviço de entregas da Kiki e o momento de crescer e mudar

Em várias culturas - talvez todas - existem rituais de passagem que marcam o fim da infância e o começo da adolescência, que traz consigo as primeiras responsabilidades que vão acompanhar o indivíduo pelo resto da vida. No caso das bruxas, a chegada dos 13 anos significa deixar a casa dos pais e viver sozinho em um lugar diferente, longe de todos os confortos a que se estava habituado até então. É o que vemos em O serviço de entregas da Kiki (Majo no takkyûbin, 1989), maravilhosa animação com o selo Hayao Miyazaki de qualidade, cuja protagonista é o retrato da fofura. Acompanhada de seu gato preto Jiji, ela arruma seus pertences e se despede da família para buscar uma cidade onde possa se instalar, e logo encontra uma pacata região litorânea onde ela ficará sendo a única bruxa. Depois de um pouso meio desastrado com sua vassoura, ela vai conhecendo o modo de vida dos habitantes locais e se encanta pelo que observa.


Mais adiante, consegue abrigo na casa da dona de uma padaria, que tinha um quarto disponível para ela dividir com Jiji, cujos comentários sensatos vêm a calhar nos momentos de indecisão da garota. Uma vez morando de favor ali, ela precisa encarar sua nova realidade: crescer não é fácil, requer atenção e cuidado. O olhar sobre o mundo e as pessoas vai se modificando. O sentimento pelo sexo oposto não é mais de aversão, mas de um interesse que parece inexplicável, daí o medo da aproximação com Tombo, garoto com aparência nerd, o que se confirma por sua enorme paixão por aviões - uma constante em Miyazaki. Se crescer e mudar é inevitável, resta aprender a lidar com essas consequências. Para o olhar ocidental, a maturidade é cobrada cedo demais de Kiki, mas vale lembrar que a exigência de uma postura adulta acontece em outras culturas do lado oposto ao nosso do globo. Veja-se o caso dos indianos, que tendem a se casar antes mesmo dos 15 anos. 

De qualquer maneira, sua independência progressiva contrasta com a permanência de Tombo e seus amigos em casa. As únicas preocupações desses humanos normais são estudar e tirar boas notas, e suas diversões se assemelham às de quaisquer outros garotos e garotas de sua idade em qualquer outra parte do mundo. Ao se dar conta disso, Kiki parece sentir também uma ponta de inveja da tranquilidade que paira sobre eles, já que ela precisa se arranjar e não pode ficar inteiramente à mercê da bondade da mulher que lhe deu um teto. Surge então uma ideia simples e eficiente: oferecer um serviço de entregas expressas para os habitantes de Koriko, a cidade portuária em que se alojou. Não demora para que apareçam os primeiros clientes, entusiasmados com a possibilidade de ter suas encomendas levadas por uma simpática menina montada em uma vassoura e acompanhada de seu gato. Os felinos, aliás, também são figuras comuns nas histórias assinadas por Miyazaki - quem já viu Meu amigo Totoro (Tonari no Totoro, 1988) deve se lembrar com carinho do adorável Gato Ônibus.


Com todos esses elementos reunidos, O serviço de entregas da Kiki é um registro extremamente fofo das dores e alegrias de viver quando se tem menos de duas dezenas de anos, que vem sob a forma de lembrete para quem já cruzou essa fronteira há mais ou menos tempo. O cuidado de Miyazaki na construção da imagem, bem como a captura de instantes prosaicos que não encontram espaço na esmagadora maioria das animações de outros estúdios, conferem uma qualidade ímpar à sua obra, dotada de uma franca unidade que torna possível começar a visitar sua filmografia por qualquer um dos seus títulos. Todos são viagens maravilhosas a um mundo que não está acessível por outra via que não a da arte, pródiga em recriar a realidade ao bel-prazer ou ao ângulo de visão de seu autor, e inundar retinas ansiosas por composições imagéticas multicoloridas e carregadas de significado. Essa não é apenas uma história sobre deixar de ser criança. É também sobre a descoberta do mundo e suas incoerências, que gritam ou calam a depender do momento, do lugar e da pessoa.

O longa foi a primeira parceria entre o estúdio Ghibli e Disney, que cuidou da dublagem em inglês em 1997 e lançou o filme em solo estadunidense no ano seguinte. Entre outros elementos já apontados, O serviço de entregas da Kiki também acena para a importância de cada um descobrir o que sabe fazer de melhor, e para o quanto pode ser paralisante cultivar incertezas (enquanto se pensa, quase não se vive). Kiki e Tombo têm suas diferenças, mas há muitos pontos que os unem, como a vontade de pertencer a um grupo e a procura por algum tipo de diversão. Do outro lado da tela, o público de diferentes faixar etárias pode se identificar com esses personagens, mesmo que seja apenas através de seu lado juvenil que nunca morreu, está apenas adormecido e acessível por meio de um pouco de estímulo. Em apenas 103 minutos, Miyazaki ainda encontra tempo de discorrer brevemente sobre o estado de bloqueio criativo, o que reforça o olhar de que há sempre traços autobiográficos em seus belíssimos traços. É quando Kiki percebe que seus poderes não estão funcionando e precisa encontrar o caminho de volta para eles. O ato final, encerrado por uma linda canção, fecha com chave de ouro uma narrativa em que, talvez, a maior protagonista seja a fofura.

9/10

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