Desencanto, um romance para acalentar o coração


Antes de abraçar a grandiloquência dos épicos, David Lean sussurrou ao pés dos ouvidos de cinéfilos dotados de sensibilidade com Desencanto (Brief encounter, 1945). Carismático e inebriante do começo ao fim, o longa-metragem atesta a força de uma história bem contada e vivida por personagens convincentes. Tudo começa quando a dona de casa Laura Jesson (Celia Johnson) encontra, por casualidade, o médico Alec Harvey (Trevor Howard) em uma estação de trem. Ambos sempre passam por ali por conta de suas rotinas e, mesmo tendo seus respectivos cônjuges, não tarda para que a relação de amizade entre eles evolua para em intensa paixão, o que se configura como o grande impasse da narrativa. Lean se vale de recursos que, com o passar do tempo se tornariam recorrentes no subgênero “romance furtivo”, e que, em seu filme, pulsam com grande força. A história já começa com Laura e Alec em um de seus encontros semanais na cafeteria da estação, que é interrompido pela chegada de uma conhecida de Laura muito falante.

Algumas cenas depois, entende-se que os protagonistas haviam se conhecido pouco tempo antes, e dispunham da companhia um do outro apenas às quintas-feiras, quando seus itinerários incluíam a passagem pela tal estação. Aquelas poucas horas semanais de que eles desfrutavam juntos eram seus alentos, conforme a própria Laura indica em sua narração em off quando a trama passa a caminhar flashback adentro. O espectador é transportado para aquele romance e transformado em cúmplice da história de amor de descaminhos experimentada pelos dois, em uma condução praticamente irresistível de Lean. Os diálogos e os olhares de Laura e Alec transbordam a desventura, a certeza e a consciência constante de que aquele relacionamento tem prazo de validade e, pelo bem de suas respectivas famílias, sequer pode chegar às vias de fato. Com isso, o diretor nos faz enxergar o opróbrio que paira sobre os amantes.

O Grande Prêmio do Festival de Cannes, equivalente à atual Palma de Ouro, foi endereçado a Desencanto no ano de sua exibição na Croisette. Feliz escolha do júri, que soube laurear uma produção de inúmeras qualidades e força dramática assombrosa, valendo-se de uma temática que, em tantos anos de cinema, já se encontra esgarçada, mas que ainda pode render joias de valor inestimável. São os poucos os elementos cênicos que compõem o filme. A trama se passa basicamente na estação de trem, na cafeteria e, por alguns instantes, na casa de Laura, cujo marido é apresentado como um homem atento e preocupado com a esposa, mas que não tem a menor ideia de que ela está cada vez mais envolvida por outro homem, com quem vem compartilhando pequenas alegrias e sorrisos sinceros. Nesse ponto, o filme também exibe qualidade, por não se apegar ao perigo da abordagem maniqueísta, que poderia levar a caracterizar o marido como um homem desagradável e lançar Laura ainda mais nos braços de Alec.


A base para o roteiro de Desencanto está na peça teatral de Noel Coward, e isso fica claro especialmente por causa da restrição espacial vista na trama, assim como pelo fato de a palavra desempenhar papel importantíssimo na narrativa. Laura e Alec declaram o que sentem um pelo outro lá pelas tantas, quando seus olhares mútuos já denunciavam que existia um forte sentimento maior que amizade a entrelaçá-los. O romance dos dois reside muito mais nas suas falas e nos seus pequenos gestos e está, desde a sua gênese, fadado a desventura e à brevidade, sobretudo depois que Alec revela a Laura que está prestes a partir para outro país por causa de sua profissão. Com isso, Lean faz de sua obra uma união comovente entre amor e melancolia, sem transforá-la jamais em um vale de lágrimas ordinário. E, mesmo que se saiba que não existe futuro para o relacionamento dos protagonistas, surgem alguns momentos luminosos que os fazem se esquecer dessa limitação, como quando vão ao cinema e se deixam levar pela magia da sala escura, em uma das várias sequência encantadoras do longa.

Por mais que os personagens sequer façam uso do termo, Laura e Alec são dois adúlteros em potencial, cujo romance está muito mais no plano das ideias que das ações. É essa condição que lhes traz tormento e desencadeia o processo que dá título ao filme. Certos de que não podem abrir mão da fidelidade a seus respectivos parceiros, eles abdicam de um envolvimento corpóreo e se restringem a algumas juras de amor um tanto tímidas e desalentadas. Existe uma grande intensidade emocional na trajetória errática desses amantes desventurados, para os quais estão reservados apenas breves encontros, dos quais o último é justamente o mais breve, em virtude de uma interrupção que não poderia ser mais impertinente. Diante de tamanha intensidade, os olhos talvez fiquem marejados, um reflexo da forte comoção despertada por esse conto que reúne a antítese do impacto e da sobriedade.

Comentários

  1. O maior trunfo desse filme é ser romântico sem ser sentimental demais. Mesmo em seus grandes épicos David Lran nunca foi muito exagerado, e já mostra nesse filme que sobriedade é o melhor negócio.
    Abraços!

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  2. Esse foi o único filme de David Lean que vi até agora, Lê.
    Espero que os épicos dele sejam realmente bons!
    Obrigado pela visita e pelo comentário!

    Abraço

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