Caprichos do coração registrados em Bem amadas


O cerne de Bem amadas (Les bien-aimés, 2011) é o padecimento causado pelas paixões inflamadas. Elas vêm, arrebatam, alucinam e tiram muitas coisas e pessoas do seu lugar. Demonstrando fidelidade a um estilo romanceado na abordagm do tema, Christophe Honoré fez do filme em questão mais um musical, a exemplo do que já concebera com Canções de amor (Les chansons d’amour, 2007). Até mesmo o elenco se repete quase integralmente aqui. Novamente, temos Ludivine Sagnier, Louis Garrel e Chiara Mastroianni, mas não como um triângulo amoroso dessa vez. Sagnier é Madeleine, uma vendedora de sapatos que, no ano de 1964, ponto de partida da história, dá-se conta de que sua profissão não lhe servirá de sustento suficiente, o que a leva a rumar para o caminho da prostituição. Uma vez tendo abraçado o “ofício”, a que ela, mais tarde, chama de tábua de salvação para aqueles dias difíceis, conhece Jaromil (vivido na segunda fase por Milos Forman), um médico tcheco que, dali em diante, fará parte da sua vida.

Percebe-se, desde os primeiros minutos, que a proposta de Honoré em Bem amadas é flagar um percurso de intermitências na vida de Madeleine, e mostrar o quanto dela alcançou a filha que, anos mais tarde, reviverá boa parte de sua conduta algo frívola e inconsequente. Em meio a esse caminho de paixões, contudo, faltou o próprio diretor se mostrar mais apaixonado na condução do baile de seus personagens. Sem falar no fato de a duração do filme ter se tornado excessiva. Normalmente enxuto, Honoré lançou mão de um discurso fílmico de mais de duas horas, que se descobre serem exageradas quando a narrativa está chegando à sua metade. Trata-se de um nome talentoso no que faz, mas que, no filme em análise, parece ter se deixado levar por uma prolixidade que dilui a força e o interesse diante de sua obra. Felizmente, existem trunfos que impedem que o longa se torna uma perda de tempo.

O principal deles é o elenco afiado, que, como já se disse, é composto basicamente por colaboradores habituais do diretor. O trio mencionado anteriormente oferece grandes desempenhos e chegam a causar alguma identificação no espectador à medida que vão demonstrando aquela velha inabilidade no trato com o amor. Madeleine, por exemplo, é uma desvairada. Tem capacidade para distribuir o seu amor, não se atrelando muito ao conceito de fidelidade. Os outros dois só vão aparecer lá pelas tantas, quando a trama avança décadas e Vera nos é apresentada, assim como Clément. Ela é a filha de Madeleine, outra inepta diante do amor, e ele é um de seus casos mais recorrentes, com quem mantém uma espécie de relacionamento difícil de nomear. Juntos, eles reúnem beleza e viço, além de um cabedal dramático admirável que torna seus personagens, no mínimo, interessantes. De qualquer modo, eles também sofrem com o roteiro que perde fôlego, tornando aflitiva a vaguidão de suas atitudes e diálogos.


Quando foi exibido em Cannes, o filme não chegou a empolgar em momento algum, o que não é exatamente novidade em se tratando de Honoré. As sessões de seus filmes na Croisette costumam ser encaradas como meros exercícios de pedantismo e enfado, tal qual o foi quando da exibição de Em Paris (Dans Paris, 2006), incluído na Quinzena dos Realizadores. Até seu filme passado, poder-se-ia falar em má vontade e injustiça por parte do público e da crítica contra o diretor. Entretanto, Bem amadas chega perto de justificar o desapego dessas pessoas à sua obra. Uma boa dose de enxutez faria teria efeitos salutares ao filme, que se revela um tanto decepcionante malgrado os detalhes que depõem a seu favor. A segunda incursão de Honoré pelo musical é truncada, e as afetações do roteiro e até mesmo da montagem aproximam o longa daquilo que vem se convencionando denominar produto de perfumaria. Há belas imagens e belos figurinos, mas a essência dramática é um tanto comprometida.

O realizador já foi apontado como um discípulo da Nouvelle Vague, à qual já prestou tributo em suas obras precedentes. Bem amadas também dialoga com o movimento, e faz referência a títulos como Os guarda-chuvas do amor (Les parapluies de Chebourg, 1964), que tinha Catherine Deneuve como protagonista, e que também surge aqui, interpretando Madeleine mais velha. A atriz, ícone indiscutível do cinema europeu, confere brilho e graça ao filme, e traz a sua experiência em musicais para a tela, entoando melodias de amor que massageiam os tímpanos com sua voz maviosa. Aliás, ela é uma das melhores coisas de um filme que caminha a esmo, ao que parece, de modo não proposital, o que só lhe prejudica. Bem amadas acaba por se revelar um filme de intenções obscuras, cuja história, apesar de causar certo interesse, jamais chega a arrebatar, como se deseja quando se entra em contato com qualquer produção cinematográfica. Esse arrebatamento pode vir em forma de reflexão, entretenimento, comoção... Sob a forma de alguma sensação, enfim. O ar depreciativo que envolve todos (sim, todos) os personagens também incomoda bastante, e quase torna o filme um primo de segundo grau do desastroso Amores imaginários (Les amours imaginaires, 2010). No fim das contas, sem um eixo claro em que se basear, Honoré fez de seu trabalho recente uma roleta de tiques e manias.

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