A paixão pela sétima arte compartilhada em A invenção de Hugo Cabret


Habitualmente associado a retratos pungentes de violência urbana, Martin Scorsese trilhou um caminho distinto em A invenção de Hugo Cabret (Hugo, 2011). Exalando toda a sua paixão pelo cinema, ele nos conta aqui a singela história de um menino que perdeu o pai ainda muito pequeno, e passou a viver sozinho no mundo, escondido no grande relógio de uma estação de trem no centro parisiense. Ali, ele aprendeu a se virar sozinho, sem depender das pessoas para conseguir seu sustento. E, como todo garoto de sua idade, nutre um sonho: descobrir como fazer funcionar um invento deixado pelo pai, vivido por um discreto Jude Law. O objeto é uma espécie de autômato cujo bom funcionamento depende de uma chave em forma de coração, que o menino passa a procurar com afinco, até que conhece Isabelle (Chloë Moretz), uma menina que carrega exatamente uma chave como essa nas mãos.

Rapidamente, os dois travam amizade, e ele conta para ela a respeito da tal invenção, que também é o seu maior segredo. E, uma vez que eles se tornam realmente amigos e cúmplices, uma agradável surpresa virá na esteira dessa amizade tão bela. Não se entende muito bem por quê no começo, mas, ali na estação, existe um senhor dono de uma loja de antiguidades que é sempre hostil com Hugo (Asa Butterfield), e chega a confiscar seu caderno de desenhos e rechaçar suas criações de criança. Ele é avô de Isabelle, e a menina se propõe a ajudar o órfão em prol de seu desejo de aventuras e de sua grande curiosidade. A partir dessa premissa, o filme vai caminhando – por vezes, cambaleante - , para o maravilhoso ambiente da metalinguagem, revelando as verdadeiras intenções do realizador, por assim dizer. A invenção de Hugo Cabret é uma apaixonada carta de amor ao próprio cinema, uma espécie de balanço geral sobre o ofício que Scorsese decidiu abraçar ainda na década de 60, quando dirigiu seus primeiros filmes, ainda curta-metragens. E, ao olhar com carinho e ternura para sua grande paixão, escolhe uma abordagem de tintas mágicas e encantadoras.

No fundo, não há grande originalidade no filme, mas o diretor é capaz de contar sua história habilmente, tornando os leves lugares-comuns pouco prejudiciais ao conjunto da obra, mesmo porque não são aqueles capazes de enervar o espectador. Hugo tem que lidar com uma série de pequenos obstáculos, como a forte implicância do inspetor da estação, vivido por um Sacha Baron Cohen, por vezes, caricato. Aquele homem “sem coração” não hesita em perseguir o garoto, mas se derrete todo por uma florista dócil, Lisette (Emily Mortimer), uma relação que traz lampejos de recordação de Luzes da cidade (City lights, 1931), que também mostrava esse tipo de encanto entre dois personagens. Não deixa de ser mais uma leve homenagem de Scorsese, sutilmente subscrita ao texto principal do filme. Voltando a Hugo, o garoto faz uma descoberta impensável ao se aprofundar em sua procura pela informação de como fazer funcionar seu autômato, e acaba chegando a ninguém menos que Georges Méliès, que vem a ser o mesmo senhor da loja que o rejeita sistematicamente. Assim, ele começa a conhecer um pouco mais a respeito da trajetória de um dos diretores mais importantes para a história do cinema.



Scorsese toma a liberdade de apresentar uma versão romanceada da biografia de Méliès, inserido dados que não compõem verdadeiramente a vida do realizador. Em comum, todavia, está o fato de ele ter passado o fim de sua vida em estado de abandono, sem lembrar seu passado de glória e de tantas contribuições e inovações para o cinema ainda em seus primórdios. Depois de ter dirigido filmes como Viagem à Lua (Le voyage dans la lune, 1902), um curta para sempre lembrado em qualquer análise histórica acerca da sétima arte, que apresenta a famosa cena de um foguete chegando ao satélite natural do nosso planeta, retratado com improváveis feições humanas. Diante de seu legado tão relevante e atraente, é de entristecer que seu destino final tenha sido cair no ostracismo e, no filme, isso justifica aquela antipatia inicial que o diretor demonstrava pelo menino: um clássico caso de rejeição a quem é visto como o reflexo de quem rejeita. Hugo é tão inventivo e parecido com ele anos atrás que isso lhe incomoda profundamente e lhe desperta o mecanismo de defesa que o leva a repelir o garoto, mas essa resistência se quebra graças à insistência do protagonista em auxiliá-lo.

A invenção de Hugo Cabret não só marca a primeira experiência de Scorsese com um filme de pegada mais leve e infantil, quase tão surpreendente para o currículo do diretor quanto Kundun (idem, 1997), mas também sua incursão no terreno do uso do 3D, que funciona a maior parte do tempo e nos traz uma deslumbrante Paris sob a neve e trens que parecem vir na direção do público, quase como aquela famosa cena de um dos primeiros filmes da história, A chegada do trem (L'arrivée d'un train à La Ciotat, 1896), guardadas as devidas proporções, obviamente. E a ferramenta tecnológica também surpreende pela assemblage, por assim dizer, que o diretor faz dos principais filmes de Méliès, resultando em algo simplesment genial. Fica patente para a plateia que Scorsese colocou todo o seu coração no filme, sem medo de algumas leves escorregadelas que respondem pelos traços de irregularidade do filme, como quando esse mesmo 3D parece ser esquecido a partir de determinada altura da narrativa, ainda que não chegue a fazer falta verdadeiramente. Em se tratando desse e de outros aspectos técnicos, porém, o filme se saiu impecável, o que a Academia reconheceu, tornando-o vitorioso em praticamente todas as categorias técnicas disputou. A única injustiça foi entregar o Oscar de fotografia ao longa, quando o que realmente merecia era A árvore da vida (The tree of life, 2011). Afora esses inconvenientes, A invenção de Hugo Cabret é uma lindo atestado de um apaixonado Scorsese, que consegue fazer mágica no absurdo.

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