A experiência multissensorial de Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas


A despeito de qualquer crença que possa guiar a percepção de seu espectador, Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas (Loong Boonmee raleuk chat, 2010) é uma impressionante experiência multissensorial. Sua narrativa demonstra forte inclinação para um estudo sobre a morte, fundamentado em uma série de acontecimentos insólitos que recebem um tratamento de banalidade. Ela se foca no personagem-título, um homem simpático e inofensivo encarnado com naturalismo Thanapat Saisaymar. Esse homem interiorano está sendo acometido por insuficiência renal, fato que o leva a desejar passar dias no campo. É nesse cenário bucólico e circunlóquio à cidade que estranhos desdobramentos ocorrerão, todos com igual capacidade de embevecer e inquietar o público. Ao mesmo tempo em que o extraordinário se faz presente no filme, ele também é encarado pelos personagens como o que pode haver de mais comum no mundo, e é a condução “isenta”, por assim dizer, do diretor, que confere qualidades ao filme.
O nome por trás de Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas é Apichatpong Weerasethakul, um tailandês de 40 anos que permanece incógnito para a quase totalidade de cinéfilos do Brasil e, por que não dizer? – do hemisfério ocidental. Por aqui, já circularam alguns de seus trabalhos anteriores, entre os quais figuram Objeto misterioso ao meio-dia (Dofka nai meuman, 2000), um documentário, Eternamente sua (Sud Sanaeha, 2002) e Síndromes e um século (Sang Sattawat, 2006), sendo este último o mais conhecido. Seu mais recente longa-metragem, aqui comentado, é complementado por um curta intitulado Uma carta para tio Boonmee (A letter for uncle Boonmee, 2009), filmado um ano antes do trabalho principal. Sua abordagem convencionalista para um tema convencional que se permite em inúmeras aberturas para o fantástico garantiu-lhe a vitória da Palma de Ouro em Cannes em 2010, e gerou opiniões controversas ao redor do mundo, por onde o filme foi exibido. Há quem o ame, há quem o odeie. Mas o fato é que é muito difícil permanecer indiferente ao material que o diretor apresenta. O próprio prêmio concedido pelo júri daquela que é uma das maiores vitrines do cinema internacional suscitou inconformismos, pelo que a proposta do filme não foi bem digerida.
Divergências à parte, o filme parte de uma premissa muito simples para desenvolver um estudo sobre a impotência do homem diante da morte repleto de simbolismos. A tentativa de Weerasethakul parece ter sido a de analisar o intangível, com o qual todos tentamos lidar, mas que sempre escapa de nossas mãos. Trata-se de um filme bastante sensorial, que deslumbra com uma fotografia em tons algo acinzentados, que conferem ao filme, em muitos momentos, um aspecto documental. O humor também é um aspecto presente em Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas. Ele aparece costurado em alguns diálogos entre os personagens, por meio dos quais eles fazem constatações sobre o óbvio e o bizarro da vida, despertando, assim, sorrisos de canto de boca em certos espectadores. O grande tema aqui é a morte, interpretada de um modo nada usual, mas, ainda assim, defendida como se sua abordagem fosse a coisa mais normal do mundo. Um dos simbolismos do filme surge logo em sua sequência inicial, quando a câmera captura um boi preso a uma árvore. Ele se solta e caminha floresta adentro. É quando começa a viagem sensorial na qual o cineasta guia seu público, sem qualquer pressa de se chegar ao seu destino. As pessoas vão e vêm por uma estrada, os carros passam em alta velocidade, e o fluxo de pensamento do protagonista e dos demais que o circundam permanece lento e tranquilo.

É totalmente perceptível que a narrativa do filme se vincula a uma série de crenças que são comuns a várias religiões de fundamentação na vida após a morte, o que gera incompatibilidades com aquelas que apregoam a existência de uma única vida. Mas esse aspecto pode ser sublimado, e o filme ganha força por se mostrar além desse detalhe. O que o diretor propõe é refletir sobre a morte e sobre seus efeitos na vida de quem fica, bem como sobre a maneira através da qual alguém pode lidar com a proximidade da sua própria morte. Boonmee decidiu passar seus últimos dias em uma casa perto da floresta, e é ali que ele vai discorrer e tentar entender o que será de seu porvir. O ator que dá vida ao personagem oferece um desempenho naturalista, deixando a impressão de que ele não está sequer interpretando, mas de que é ele mesmo em cena. A depender do ponto de vista eleito, esse pode ser ou não um ponto positivo de sua performance, mas o fato é que ela chama a atenção e serve como um estímulo a mais para se assistir ao filme.
Há também uma prevalência de uma atmosfera onírica em todo o filme, reforçada por cenas que desafiam a interpretação do público, e que valem muito mais a pena se forem lidas sob o prisma metafórico e também metonímico. E essa necessidade é maior na sequência em que uma mulher mergulha em um rio e se relaciona de modo na comum com um peixe, um trecho que muitos julgaram absurdo. Mas vale a pena comprar a ideia de inserir o absurdo no cotidiano proposta por Weerasethakul, que acaba por codificar o incodificável, e tentar lidar melhor com “a indesejável das gentes”, como disse Manuel Bandeira em sua obra. Também há anticonvencionalismo quando surge em cena o filho morto de Boonmee, agora na condição de macaco. Um dos pôsteres do filme faz menção a essa figura do filho, e suscita a eterna necessidade que o homem tem de descobrir e entender o que pode acontecer depois da morte. O filme não explica nada com a aparição do filho do protagonista em uma nova forma, e funde as fronteiras entre real e imaginário de forma discreta ao justapor os ambientes dos vivos e dos mortos, que, privados de uma existência, se mostram muito mais como resquícios que reverberam nas vidas de quem ainda existe, sendo ora fontes de inquietação, ora fontes de alento. Talvez por esse aspecto, o filme chame tanta atenção, embora tenha sido relegado a um circuito esparso quando esteve em cartaz. A falta de compromisso com uma lógica palpável acabou sendo uma faca de dois gumes para a narrativa, que se equilibra entre um intenso realismo e uma dose de insolidez.
A grande perseguição de Weerasethakul é pela abordagem mimética, um adjetivo que deriva de mímesis, um conceito aristotélico para definir a realidade. Com sua fotografia precisa e seu roteiro que trata da morte de modo naturalista, o filme se insere na lógica do autor grego, para quem a arte é, acima de tudo, imitação da realidade. Essa extrema preocupação em retratar o real, entretanto, não significa uma capacidade de alcançá-lo, pois toda forma de arte sempre recria a realidade, já que não somos capazes de ter acesso a ela de outro modo que não mediados pelos nossos sentidos. Nossa percepção da realidade é, portanto, comprometida. Daí a grande importância de artistas com sensibilidade mais acurada, para capturar com mais propriedade o real, ainda que isso não signifique uma apropriação exata da realidade. Em uma entrevista, citada em um artigo para o site Cinética, o diretor afirma que “a Tailândia tem uma longa e vasta cultura baseada no sentido da imitação, da mímese e da simulação”, o que só corrobora a tese de que seu cinema é feito de uma busca incessante pela apreensão da realidade como um todo. Ainda que nunca seja plenamente alcançado esse objetivo, a estética realista de Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas remete a uma aproximação enorme com o real, e seus longos momentos de reflexão inserem o filme na esfera do imaginativo e do instigante, autenticando sua permanência.

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