Pai e filho e o olhar difuso sobre um relacionamento familiar


Com uma obra extensa que soma mais de 20 filmes no currículo, o russo Aleksandr Sokurov é um diretor ainda pouco conhecido em terras brasileiras, o que é uma tremenda injustiça. Ele é responsável por uma série de produções tocantes, e inova ao investir frequentemente em experimentalismos, buscando uma renovação da linguagem cinematográfica através das obras que assina como diretor. Um dos poucos filmes seus que chegaram ao circuito foi Arca russa (Russkiy kovcheg, 2002), em que se utilizava de um único plano-sequência para apresentar um passeio pelo museu Hermitage, em São Petersburgo, conduzido por uma entidade algo fantasmagórica. Mas sua carreira se iniciou muito antes desse trabalho. Formado em História, no ano de 1974, ele realizou uma série de curtas e longas com a temática da elegia, um poema de tema triste originário da cultura grega. A palavra está presente em vários títulos de sua obra, como é o caso de Elegia (Elegiya, 1985), um curta, e Elegia moscovita (Moskovskaya elegiya, 1987), um longa.
Pai e filho (Otets i syn, 2003) é um recente exemplar da filmografia de Sokurov, difícil de ser acompanhada por quem se interessa por ela. O filme chegou a ser exibido por algumas semanas em São Paulo, em um circuito muito restrito, mas pelo resto do Brasil só teve chance em festivais que davam conta de apontar para filmes relevantes que não haviam encontrado brecha para serem exibidos de forma convencional, como foi o caso do Rio de Janeiro. É uma pena, pois isso privou muitos espectadores de acompanhar a história instigante de um pai e seu filho num relacionamento sempre intenso, e estranho ao olhar em muitos momentos. A abertura do filme já se encarrega de dimensionar nossa percepção para o que pode vir a acontecer nos minutos subsequentes: através de uma imagem difusa, temos a impressão de que há dois homens em pleno ato sexual, sentindo na pele o êxtase erótico. Com o aumento da nitidez da imagem, percebemos que é um homem confortando um jovem que acabara de ter um pesadelo, os tais pai e filho do título.
O filme é a segunda parte de uma trilogia sobre a família empreendida por Sokurov, iniciada com Mãe e filho (Mat i syn, 1997) e que encerrar-se-á com Dois irmãos e uma irmã. Entre cada um desses filmes, ele vem dirigindo outras obras. No caso específico de Pai e filho, o que salta aos olhos do público é a natureza ambígua do relacionamento mantido por um genitor com seu rebento, que se traduz em carinhos íntimos para os padrões de comportamento esperados nesse contexto. Não tarda para que sejam vislumbrados contornos homoeróticos no modo de agir de um com o outro. Ambos vivem em uma relação de dependência mútua, alimentada reciprocamente, da qual eles parecem não querer sair. Quando o longa foi exibido no festival de Cannes de 2003, Sokurov disse em entrevista que seria um absurdo associar a relação dos protagonistas com qualquer teor homossexual, e também afirmou que o modo como eles convivem “não é deste mundo”. Calcado nessa ambiguidade, o diretor vai entregando um filme de estética difusa, que rejeita a narrativa e se firma na contemplação.

A fotografia é uma forte aliada no claro recorte da realidade promovido pelo cineasta. Toda em tons de sépia, ela colabora para conferir ares especiais ao convívio daqueles homens que veem um no outro a sua completude. O pai só tem ao filho desde que se tornou viúvo, e é um militar aposentado que vive para se dedicar ao rapaz, que, por sua vez, também serve ao Exército, e não consegue pensar em se distanciar do homem que ajudou a gerá-lo. Nos poucos diálogos mantidos entre eles, entrevê-se um forte sentimento de posse da parte do pai, que se incomoda profundamente com as ocasiões em que o filho não quer lhe dar satisfações sobre algo que fez. E dois fatos importantes vão responder pelo desequilíbrio pelo qual essa convivência vai passar. Primeiro, o jovem arranja uma namorada, deixando o pai visivelmente enciumado. Depois, ele descobre que terá de viajar para longe pelo Exército, fato que o deixa hesitante, pois não poderá ver o pai todos os dias por um bom tempo. A partir daí, os laços estreitíssimos que unem os dois vão sofrer um certo afrouxamento, um fato que logo demonstrará sua irreversibilidade. A namorada do rapaz, todavia, logo se sente desconfortável com o afeto excessivo, aos seus olhos, existente entre ele e seu pai.
Cabe ressaltar que Sokurov não levanta questionamentos sobre o contato intenso entre o pai e seu filho, muito menos se posiciona contra ou favor da relação ou contra ou a favor de um dos dois. A câmera do diretor é essencialmente contemplativa, uma testemunha ocular e paciente do que está acontecendo. O juízo de valor é algo que compete apenas ao espectador, que também pode se deixar levar somente pelas imagens e não lhes dar mais do que o significado poético atribuído pelo diretor a elas. Para alguns críticos, Sokurov pode ser considerado um herdeiro direto do estilo de filmar de Andrei Tarkovsky, cineasta famoso por títulos como O espelho (Zerkalo, 1975) e O sacrifício (Offret, 1986), que filmou a lenta agonia da existência e a dor diária que pode ser estar vivo. Comparações à parte, Sokurov tem méritos próprios que lhe conferem facilmente a alcunha de cineasta sensorial, por sua capacidade de lidar, através do disforme, com o que há de mais corriqueiro na vida, como o modo de tratamento entre duas pessoas ligadas por laços sanguíneos.
Ao longo do filme, o público vai alterando sua impressão sobre aquela dupla. Ora eles parecem amigos muito íntimos, ora parecem irmãos de alma, ora parecem amantes, mas quase nunca se parecem com pai e filho, ao menos da maneira como se concebe o relacionamento entre pessoas com esse grau de parentesco. Pai e filho é essencialmente um filme ambíguo, que abre portas e janelas para interpretações variadas, deixando em aberto tudo aquilo que levanta até sua derradeira cena. O pai, com a perda da esposa, transferiu todo o afeto que dirigia a ela para seu filho, numa correspondência que jamais poderia ser biunívoca. Decerto, não é um filme para agradar a todos os públicos. Mas o cinema praticado por Sokurov está mesmo longe de ser uma unanimidade. Através de Pai e filho, o diretor se propõe a tratar do fugidio, da consagração de instantes de que é feita a convivência de duas pessoas que, antes de tudo, são seres humanos.

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