Os divertidos descaminhos do amor de Moscou, Bélgica

Certos filmes passam com incrível rapidez pelo circuito comercial, não dando muita chance ao público que gosta de se manter atualizado com o que anda sendo produzido ao redor do mundo, seja por diretores neófitos, seja por realizadores vetustos. Moscou, Bélgica (Moscow, Belgium, 2008) está inserido dentro dessa realidade, tendo ficado em cartaz nas salas de cinema do Rio de Janeiro por apenas 4 semanas. É uma pena, pois o filme se mostra com um delicioso conto moderno sobre as relações amorosas, flertando, em vários momentos, com a gramática das comédias românticas típicas, sem se tornar refém da descartabilidade destas. Seguramente, sua trama bem escrita e seu roteiro bem azeitado merecem ser conferidos.



A narrativa gira em torno de Matty (Barbara Sarafian), uma mulher quarentona com um grau de vaidade próximo do zero. Sua vida é praticamente restrita aos cuidados com os dois filhos, um menino e uma menina, frutos de um casamento já desfeito com Werner (Johan Heldenbergh), que está vivendo um romance com uma mulher mais nova (um dos clichês trabalhados no filme). Sem grandes expectativas de virada, ela segue em um conformismo incômodo com a vida, até que o seu caminho se cruza com o de Johnny (Jurgen Delnaet), um motorista de caminhão absolutamente bronco que quase passa por cima de seu carro quando está tentando sair do estacionamento de um supermercado. O primeiro encontro dos dois é uma ocasião de forte contenda, já que Matty não admite a falta de atenção de Johnny, que, por sua vez, também não quer dar o braço a torcer para sua própria distração. Para se explicar e tentar se redimir do erro, ele diz que Matty estava em seu ponto cego, o que irrita ainda mais a dedicada funcionária dos Correios.

Nesse primeiro encontro, o diretor Christophe Von Rompaey já mostra o que pretende retratar com seu filme: o florescimento de um amor em situações prosaicas. Von Rompaey não abre mão de alguns lugares-comuns em Moscou, Bélgica, mas sem deixar que o filme seja apenas um amontoado de situações facilmente encontráveis em outros filmes. Inicialmente faiscantes quando estão na presença um do outro, Matty e Johnny vão desenvolvendo uma relação mais afável, que se deve totalmente à insistência dele em se aproximar daquela mulher tão comum e, ao mesmo tempo, tão fascinante aos seus olhos. Com isso, o filme vai ganhando o público pacientemente, assim como Johnny vai ganhando Matty com seu jeito turrão e aparvalhado, que a seduz quase naturalmente. O título do longa traz uma brincadeira com lugares geográficos que pode confundir os espectadores mais incautos. Trata-se de um filme belga, e não russo. Moscou é o nome de um bairro circunlóquio da Bélgica, e seus personagens falam uma língua que parece um híbrido de alemão com francês, além do próprio alemão. Essa salada de referências nacionais ajuda a dar ao filme um aspecto mais universal, demonstrando que as agruras e os anseios do ser humano não estão atrelados a regiões ou cidades.



Matty passa a lidar com o ciúme de seu ex-marido, um professor de literatura cheio de empáfia, que simplesmente não admite o envolvimento da ex-mulher com alguém tão “rudimentar”, na sua percepção. Eis outro clichê aproveitado pelo filme: as intrigas amorosas geradas pelo inconformismo de um dos vértices do triângulo com a situação que está instaurada. Mas, mesmo que se apoie em tantas sequências com um ar de déjà vu, o diretor consegue manter a atenção, e oferecer uma abordagem naturalista e despojada que serve de fonte de estímulo para que se continue assistindo ao filme. Ambos os atores principais demonstram estar muito à vontade em seus papéis, contribuindo para a estética simples adotada por Van Rompaey ao longo dos 102 minutos de duração de Moscou, Bélgica. Como em outros filmes que se tornam preciosos aos olhos do público, o grande achado deste é contar muito bem sua história, que, por si só não é inédita. Pelo contrário, acontece todos os dias em todos os lugares.

E a protagonista ainda tem uma outra questão com a qual lidar, envolvendo a sexualidade de sua filha adolescente, quando seu relacionamento com Johnny já está avançado. Aliás, o passado de Johnny é outra questão que se coloca como um importante dado a ser considerado por Matty, algo que é entendido pelo espectador do filme. Basicamente, Moscou, Bélgica está calcado nesse premissa de redescoberta da vida e do prazer de uma mulher que vinha impondo o ostracismo a si mesma. Uma história que é contada com uma alta dose de realismo, distante da composição feérica de outros realizadores, que entregam comédias românticas embebidas em um teor de melodrama acima do suportável. É uma pena que o diretor do filme tenha tido poucas chances nas telas de cinema do Brasil, apesar de sua carreira relativamente extensa como diretor, e também como roteirista, produtor e assistente de diretor. Moscou, Bélgica é seu primeiro longa-metragem como diretor solo, mas ele já assinou alguns curtas e algumas minisséries para a TV entre os anos 90 e a metade dos anos 2000. Seu novo trabalho, Lena, ainda sem título em português, está atualmente em pós-produção, tendo sido filmado na Holanda, e que conta a história de uma adolescente solitária.

A seu favor, Van Rompaey tem a despretensão, a força motriz de um filme que evoca a Paris, Texas (idem, 1984) em seu título e em sua alusão a seres perdidos em uma realidade complexa, que não pode ser explicada apenas com palavras, como o senso comum normalmente acredita. O filme foi exibido no festival de Cannes de 2008, onde recebeu o prêmio Acid, entregue a produções que estão fora da competição oficial. A láurea exprime o apreço do júri do festival por enredos simples, provando que a inventividade não é condição sine qua non para valorar filmes, e que pode ser um meio eficiente de se mostrar como universalizante. A narrativa de Moscou, Bélgica corre sem sobressaltos nem pirotecnias de qualquer ordem, ativando no público um sentimento de empatia pelas pessoas que estão sendo retratadas, e não nos cenários ou nos efeitos visuais que suas histórias poderiam apresentar. O diretor fala de gente ordinária, para quem a vida pode reservar pequenas surpresas, agradáveis ou não, e provar que existir também é embarcar em uma viagem além do óbvio.

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