Cinema, aspirinas e urubus: uma ode à simplicidade

Quem menospreza o cinema nacional corre o sério risco de perder um grande filme como Cinema, aspirinas e urubus (idem, 2005). Aliás, a ojeriza à cinematografia de qualquer nação é completamente infundada, pois em qualquer lugar do mundo existem bons e maus diretores, bons e maus filmes. Cabe a cada espectador vasculhar no amplo universo de produções aquelas que mais lhe aprazem. Sempre haverá algum filme que agrade a algum gosto pessoal. No caso de Cinema, aspirinas e urubus, o título um tanto estranho encobre uma obra em que a sensibilidade reina absoluta, através de diálogos, cenas e caracterização de personagens.


Quando de seu lançamento, em 2005, o longa atraiu tanto o público quanto a crítica, que rapidamente comprou a história de Johann (Peter Ketnath) e Ranulpho (João Miguel), dois homens em estado bruto que têm suas trajetórias ordinárias confrontadas em pleno sertão brasileiro. Cada qual por seu motivo, eles se unem para percorrer lugares áridos, marcados pela desesperança de seus habitantes, que encontram nas sessões de cinema do remédio vendido por Johann um regaço para suas almas cansadas de sofrimento. Suas longas viagens incluem no roteiro visitas a comunidades de gente simples, para quem o alívio chega sob a forma de pequenos comprimidos, a aspirina do título.

A época em que vivem é o início do século XX, durante a Segunda Guerra Mundial, período nebuloso da história ocidental recente, que justifica a vinda de Johann para o Brasil. Afinal, ele é um alemão, que acaba radicado em nosso país, por uma questão de sobrevivência. Como Ranulpho, ele não tem raízes fincadas em lugar algum, e deseja apenas ter para si o pão diário, através do qual vai sobrevivendo. Ambos apresentam outros pontos de convergência, como a simplicidade com que enxergam a vida, que nem sempre é vista como uma dádiva, mas como um fardo pesado que se deve carregar diligentemente. Juntos, eles sofrem baques, vivenciam experiências inesquecíveis diante da miserabilidade dos indivíduos para quem oferecem o medicamento, e buscam se adequar ao que as circunstâncias lhes apresentam.

A grande eficência do filme está, entre outras coisas, na direção segura de Marcelo Gomes, que reforça o tempo todo uma estética da simplicidade com os diálogos econômicos dos personagens centrais do longa. Cada fotograma é marcado pelo lirismo em seu sentido adjetivo, no qual assume o significado de expositor das impressões pessoais de um eu. Longe de qualquer ambição de análise teórica de Cinema, aspirinas e urubus, essas linhas funcionam muito mais como uma impressão afetiva sobre uma história que tem brilho próprio. Tanto Peter Ketnath quanto João Miguel foram escolhas bastante acertadas para dar vida a Johann e a Ranulpho. Ao observá-los na tela, tem-se a nítida ideia de que eles nasceram para os papeis, e fica até mesmo a dúvida se eles estão mesmo interpretando.

A câmera de Gomes também é uma parceira eficaz. Sua observação do desenrolar dos acontecimentós é discreta, como a de uma fiel testemunha que apenas espia ao redor, isenta de qualquer sentença contra ou a favor do objeto de observação. O cineasta despe seus personagens de qualquer maquiagem, e não faz deles meras vítimas da vida, rejeitando a hipótese, remota que seja, de lhes imprimir uma aura de desvalidos e pobres de espírito. Pelo contrário, eles crescem com a longa jornada em que se inscrevem, colhendo fatos e situações para os quais não veem solução, mas que lhes servem de fonte de encantamento ou indignação. Extraem daquilo que vivem lições preciosas, e buscam obter vitórias em meio à limitação. Sombras discretas de um otimismo pairam em seu caminho, demonstrando que eles se conformam apenas com centelhas de um porvir mais positivo que os dias hodiernos.


Com Cinema, aspirinas e urubus, Marcelo Gomes prova que a cinematografia brasileira pode ser bastante fecunda, apresentando títulos que dialogam com uma macrorrealidade, para além das fronteiras do nosso país. Àqueles que insistem em encerrar a produção brasileira a uma masmorra obscura, dentro da qual cabe somente o retrato violento de favelas - o que nem é um demérito, por razões de ordens diversas - a lição de que um bom cinema também pode abdicar dessa premissa é urgente e necessária. Depois da assistir ao filme, certamente a sensação que ficará é a de estar diante de um talento indiscutível de alguém que consegue radiografar as mazelas de uam sociedade doente, cujos problemas apresentados há décadas ainda não encontraram uma solução eficiente.

E tudo isso assinalado por um ritmo, uma montagem e uma edição que deixam o melhor para o espectador, sem fazê-lo tropeçar em concessões óbvias. Gomes faz a opção por uma drama de contornos naturaliastas, apresentando a realidade da qual fez um recorte em tom quase documental, espargindo progressivamente a tênue fronteira entre real e fictício. Não por acaso, a empatia é gerada no espectador sem grandes esforços, pois aquilo que está diante de seus olhos é uma realidade patente, isenta de vernizes filosóficos. E a paisagem é revelada através de um meticuloso estudo de cores contrastantes, jamais edulcorados por qualquer fagulha de idealização. Por meio de uma fotografia excelente, que demarca a solidão daqueles indivíduos que são dois entre tantos outros por que passam dia após dia, o filme cumpre um papel de porta para a reflexão sobre o cotidiano de seres que defendem honestamente seus víveres. E, mais do que isso, o papel de plataforma para o pensamento crítico a respeito da condição humana.

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