Silêncio, escapismo e imobilidade em "3 macacos"

De tempos em tempos, surgem no cinema exemplares audiovisuais de rara beleza somada a existência de algo a dizer por meio de uma boa história. Há que se saudar um diretor em especial por isso, e o seu nome é Nuri Bilge Ceylan. Ele é o principal responsável por sacudir internamente o público com a experiência provocada por 3 macacos (2008).

Rodado em 2008, entre França, Itália e Turquia, o filme é um tratado competente sobre a dissolução de verdades aparentemente estáveis entre os membros de uma família. Pai e filho, marido e esposa, cada um dos polos de uma relação tríptica, têm dentro de si espécies de subverdades quase a ponto de transbordar. Falta apenas uma gota d'água.
E tudo começa a desmoronar, de fato, depois que o pai é chamado por seu chefe para assumir a culpa por um crime cometido por ele numa estrada enquanto dirigia à noite. Essa é, inclusive, a primeira cena do filme. A mais completa escuridão dá lugar, paulatinamente, a uma penumbra, para que se veja um atropelamento. Ainda que tenha sido por acidente, o culpado (o chefe de Eyüp, o pai) pensa apenas em fugir do local, e logo contata seu funcionário para lhe falar do ocorrido, propondo-lhe um acordo. Em troca de uma alta quantia em dinheiro, Eyüp irá preso pelo crime que não cometeu. Ao final de um período, a família dele receberá o dinheiro determinado. Desde o começo da narrativa, fica claro que não há muita comunicação entre o marido, a mulher e o filho. Os três não chegam a ter uma conversa franca sobre a atitude de Eyüp, que concorda com o trato. Ele simplesmente aceita, vai para a cadeia, e recebe apenas visitas regulares do filho enquanto está lá. Sua mulher parece não estar muito preocupada com sua estada naquele lugar.
Esse comportamento frio e silencioso é o ponto convergente entre o trio de protagonistas. Daí a eficiência de um título como 3 macacos. Tal qual os primatas do velho provérbio oriental, eles fingem não ver, ouvir ou falar sobre seus problemas. A todo custo evitam partir para o conflito aberto, varrendo qualquer deixa para uma discussão a respeito do que estão fazendo de suas vidas. Estão cegos, surdos e mudos por convicção.
Por meio desses laços frágeis que existem na família, Ceylan aborda uma questão tão antiga quanto crucial: o abismo entre os homens. Por mais que falem, conversem, nunca estão completamente a par do que o outro sente. Aqui, como se vê, a escolha é pelo silêncio, valorizada por uma quase ausência de trilha sonora, salvo em algums cenas. Além disso, há poucos diálogos no filme, o que permite destacar algumas passagens em especial, como a que vem a seguir.
A mãe tenta participar da vida do filho, perguntando sobre seus passos e com quem está andando, mas não obtém respostas. Sua preocupação é interpretada como invasão e controle, o que desagrada profundamente o filho. É patente a divergência entre o que se quer dizer e o que se entende daquilo que se diz. Cineastas com carreira brilhante enveredaram por esse caminho, como Bergman e Antonioni. O sueco criou a Trilogia do Silêncio, que em que discorre sobre a ausência de vínculo comunicativo eficaz entre as pessoas. O mesmo procurou fazer, com uma habilidade inenarrável, o italiano, ao dirigir a Trilogia da Incomunicabilidade.
Com 3 macacos, Nuri Bilge Ceylan se filia diretamente a essa tradição cinematográfica de mergulhar no íntimo das relações humanas. Durante a prisão do marido, Hacer, a mulher, sofre de grande carência, e se aproxima do chefe de Eyüp. O filho, por sua vez, está muito mais interessado e se beneficiar com o dinheiro que será entregue pelo autor da proposta. Em uma cena, chega a pedir à mãe que consiga o adiantamento do valor acordado. Não fica explícito no filme, mas parece que o jovem tem más companhias, e sua preocupação em ter a quantia reside aí. Ele até se mostra inclinado a defender o pai, vigiando a mãe, para que esta não se relacione amorosamente com ninguém.
O tempo passa, e o pai sai da cadeia, inaugurando uma nova fase na espiral de imobilidade que tomou conta dessa família. Vem a fúria em Eyüp, assim que ele descobre que foi traído. A sua reação violenta é um dos pontos de maior ação de todo o filme, que transcorre, na maioria das vezes, sem grandes sobressaltos ou viradas de roteiro. Essa característica ajuda a manter a coerência com o projeto inicial de flagrar o oculto por trás das aparências que sufocam a convvivência entre trâs pessoas. Nada acontece subitamente, mas segue um ritmo linear e gradual, uma coisa após outra. Como na vida, afinal. E Ceylan parece ter o controle desse timing nas mãos.
Outro detalhe de impacto e relevância em todo o filme é sua fotografia. A luz é utilizada de maneira parcimoniosa, aparecendo com grande discrição, mesmo em ambienteas mais abertos. Há um aspecto naturalista muito forte, associado a um teor claustrofóbico intenso percorrendo os espaços filmados em 3 macacos. Isso se traduz em momentos de incômodo no espectador, que tem sua capacidade de se manter impassível ante o pesar alheio desafiada contumazmente.
Por todos esses fatores, aqui está um filme que expressa sua mensagem de forma oblíqua, levando a uma crescente necessidade de se atentar para detalhes. O grande perigo, e também a grande possibiidade, é se reconhecer em algum personagem, ou em alguma atitude. Quem procura diversão passageira e piadas rasas deve passar longe de uma história como essa. Mas aquele que buscar ir além do ordinário será confrontado com sua prostração em cada gesto, olhar e fala desse trio.

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