QUINTETO DE OURO - DÉCADA DE 70

Ah, os loucos anos 70... Não vivi essa época, mas através do cinema já pude passear bastante por cidades, pessoas, hábitos e canções que assinalaram essa década, e está aí um dos grandes privilégios que essa arte centenária reserva aos seus espectadores. Nesta quarta edição do Quinteto de Ouro, em que tento reunir apenas 5 prediletos sob algum tema. As três primeiras edições versaram sobre diretores, mas a ideia é diversificar sempre e, dessa vez, selecionei 5 títulos que pertencem à década supracitada. 

Já havia escrito sobre quase todos os filmes escolhidos aqui, com exceção do quarto. Decidi então, pinçar trechos das minhas críticas originais sobre eles, ainda válidas, e redigir um parágrafo inédito apenas para esse quarto.

Adotei um único critério de seleção: não valia repetir diretores, a fim de compor um painel um pouco mais amplo. Além disso, um outro filme está fora da lista simplesmente para evitar a repetição: Taxi driver. Como já o tinha incluído no quinteto de Martin Scorsese, considerei melhor deixá-lo apenas naquela lista. Ah, e Woody Allen não teve espaço porque, logo logo, ele vai ganhar uma lista só dele (não poderia ser diferente com meu diretor preferido...). 

Fica, assim, essa menção honrosa a ele, e seguem abaixo os eleitos de mais um Quinteto de Ouro, dispostos em ordem cronológica crescente.

1. Zabriskie Point (Michelangelo Antonioni, 1970)


É bem verdade que Zabriskie Point não é considerado um dos melhores filmes de Antonioni, uma tremenda injustiça quando se coloca os olhos sobre ele e se depreende sua profundidade e sua grandeza. O título, aliás, faz referência a uma localidade situada no oeste estadunidense e conhecida como Vale da Morte, um nome indigestamente sugestivo para se correlacionar com jovens, cuja vida, geralmente, pulsa intensa e que não têm a menor pretensão de morrer. No que tange à trilha sonora, o longa também exala força: canções de bandas como Pink Floyd – então com apenas 5 anos de existência -, The Youngbloods e The Kaleidoscope embalam a jornada pungente desses dois jovens desorientados. E, se em Blow up – Depois daquele beijo, a explosão era interior e silenciosa, aqui ela é totalmente audível, ainda que não passe de uma projeção de Daria (Daria Halprin), cujo desconcerto entre as próprias convicções e as de seu antigo chefe atinge um ponto de saturação. 

2. O discreto charme da burguesia (Luis Buñuel, 1972)


A verdade é que O discreto charme da burguesia funciona como um engenho jogo de construção e quebra de expectativas, com rupturas de interação que podem surpreender e, por vezes, enervar o espectador. Qualquer semelhança com uma breve descrição de uma obra de arte não será mero acaso. O filme tem o poder de inquietar e causar todo tipo de reação, algo que é inerente à verdadeira composição artística. Buñuel brinca de embaralhar a narrativa o tempo todo, colocando seus adoráveis burgueses com um típico ar blasé em situações absurdas, para, na cena seguinte, mostrar um deles despertando assustado de um sonho ruim. Essas cenas nos levam a questionar até onde as situações foram verdadeiras e o que pode ter sido fruto dos delírios imaginativos de Florence, Alice, Rafael e companhia, numa intrigante subversão da cronologia engendrada pelo realizador. Forma-se, então, um ciclo: quando se começa a comprar um jantar como verdadeiro e bem-sucedido, logo um imprevisto assola a reunião e impede que os convivas se refestelem como o planejado. Então, entramos em uma espiral de eterno recomeço que sacode a tela o tempo todo.

3. Cenas de um casamento (Ingmar Bergman, 1973)


Entre as várias qualidades que podem ser apontadas no filme, uma das principais é, seguramente, o texto muito bem escrito , cuja autoria coube ao próprio diretor. As palavras quase sempre exalam sinceridade e, quando não o fazem, um gesto ou um olhar dão conta de exprimir aquilo que realmente se passa com o casal. Não há reducionismos aqui: tanto um quanto o outro se mostra em vários lados, corroborando a ideia de que a fragmentação é parte integrante da composição de cada indivíduo. Avesso a qualquer formatação e opinião pré-concebida, Bergman examina Johan e Marianne e deixa que o público escolha de que lado prefere ficar, se é que se pode falar em lados quando se trata de um relacionamento a dois. De qualquer modo, mesmo que a decisão do espectador seja a de torcer por um deles, é bem provável que suas impressões mudem a todo tempo, à medida que o filme transcorre e mais e mais aspectos da natureza dos personagens vão vindo à tona. E, de nada adiantaria um texto tão transparente se o diretor não contasse com os desempenhos assombrosos de Ullmann e Josephson. Velhos conhecidos de Bergman, eles são escolhas acertadíssimas, demonstrando mais uma vez o quanto são intérpretes talentosos.

4. Uma mulher sob influência (John Cassavetes, 1974)


Centrado no drama de Mabel (Gena Rowlands) e suas ondulações psicológicas, o longa-metragem assinado por Cassavetes pai escava as paredes do desconforto e oferece um tour de force memorável de sua atriz fetiche e esposa. Numa lista de grandes interpretações, esta certamente é digna de espaço. São mais de duas horas de uma mulher tentando se encaixar nas convenções impostas pelo meio social, e que lhe são extremamente penosas e estranhas, daí a implosão que se converte em atos de lógica questionável. A angústia impregna seu olhar e reverbera nas suas entranhas, e o marido Nick (Peter Falk, outro gigante em cena) não dá conta de conviver diariamente com um turbilhão emocional desses. E a vida está cheia de pessoas assim: uns caem, levantam e seguem em frente; outros, vivem um dia após o outro sob um esforço descomunal e precisam mais de alguém ao redor.

5. No decurso do tempo (Wim Wenders, 1976)


As viagens dos protagonistas pelas estradas também traz à tona a questão da incomunicabilidade que tanto aflige os seres humanos, da qual os personagens não escapam. Os pequenos ruídos de comunicação entre ambos responde pela oscilação na sua proximidade, assim como acontece com amigos cuja relação sofre ranhuras, ainda que imperceptíveis a olho nu, a cada vez que uma dissonância importante se concretiza. Nesse sentido, a abrangência de No decurso do tempo é enorme, por nos deixar entrever na lenta caminhada de Bruno e Robert algumas das nossas idiossincrasias mais veladas, ainda que, mesmo no filme, elas não apareçam escancaradamente. Wenders aposta nos silêncios e nos olhares que comunicam em parte e sublinham a angústia da procura por um interlocutor. A amizade entre Bruno e Robert é como um pálio de luz que se abre sobre eles e está circunscrita a um arco de tempo específico. Enquanto o tempo não finda, eles conhecem um pouco sobre o outro e um pouco sobre si mesmos. 

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