O confronto entre pureza e castração em Dersu Uzala

De início, sabemos pouco a seu respeito, e muito do que está por vir ao longo de mais de 120 minutos de projeção é transmitido sob o filtro afetivo do olhar do capitão Vladimir Arseniev (Yuri Solomin), que relembra os anos de amizade com Dersu (Maksim Munzuk) ao retornar a um dos locais por que passaram em suas várias expedições frio adentro. Esse é o outro eixo sobre o qual o longa se baseia: a força e a importância do carinho em todas as horas. Depois de se conhecerem quase por acaso, quando o capitão precisa ser resgatado, Dersu e ele estabelecem um vínculo estreito, e logo percebem que podem contar um com o outro seja em que circunstância for. Cada qual a seu modo, eles representam polos opostos e estilos e meios de vida, mas as diferenças abissais que poderiam impedir um relacionamento saudável entre os dois produzem justamente o efeito contrário: um apego que resiste aos anos e aos períodos de distância.
Enquanto Dersu é a pureza e a liberdade para viver em contato com a natureza, Vladimir leva consigo a castração urbanoide, pensando a agindo conforme um código de restrições a hábitos simples, como sair para caçar e viver um dia de cada vez, sem ficar ansioso e preocupado com relação ao amanhã. Em alguns momentos, esses mundos distintos entra em choque, mas o que prevalece é o enorme afeto que os une, e servem para mostrar à plateia que boa parte das diferenças entre amigos pode ser conciliada em favor da continuidade da amizade. Paralelamente a essas e outras constatações que aciona, Dersu Uzala é um filme de belíssimas paisagens, inteiramente localizado fora do Japão natal de Kurosawa. Àquela altura, o diretor já tinha se internacionalizado de vez e recebido muitas críticas que davam conta de acusá-lo de negligenciar sua própria cultura. Pura bobagem. Ele sempre preferiu abraçar um cinema sem fronteiras, e isso é prova de que pode e deve ser encaixado no rol dos grandes realizadores, sem medo de exagerar.
A passagem mais marcante de toda a história, sem dúvida, é a que mostra Dersu e o capitão lutando contra uma nevasca que os acomete enquanto eles estão caminhando por uma estepe. Sozinhos naquele imenso espaço aberto, eles precisam somar suas forças e construir um abrigo. Inicialmente temeroso, o capitão é encorajado por Dersu, e eles lidam com uma temperatura baixíssima - inconcebível para cariocas e moradores de outras regiões tropicais - para dar cabo da empreitada. Aos poucos, o explorador russo vai entendendo o significado mais amplo do gesto, e os longos minutos gastos por Kurosawa na concepção da cena demonstram o seu zelo e a sua preocupação em dizer muito mais por imagens do que por palavras, embora ele também se valha de algumas delas quando os amigos declaram abertamente o quanto querem bem um ao outro.
Dersu Uzala é um gracioso convite para uma espécie de volta às origens, em que importavam os valores simples, a comunhão fraterna e o apreço pelos momentos cotidianos. Tudo isso sem qualquer traço de manipulação ou pieguice, fotografado com esmero por Asakazu Nakai e mais dois colaboradores. Para alguns, a narrativa se estende além do necessário, mas esse é um mal de que outro filme do diretor, muito mais celebrado, sofre: Os sete samurais (Shichinin no samurai, 1954), excessivo em retratar uma batalha e sua longa preparação para enfrentá-la, algo de que os fãs, certamente, discordam. O caso de Dersu Uzala, porém, é de um feliz encontro entre um roteiro bem construído, atores em estado de graça, cujas faces desconhecidas para a maior parte do público singularizam-nos e permitem que nossas memórias associem seus nomes aos seus personagens. A propósito do excelente texto, ele é adaptação do livro homônimo do capitão, o que deixa tudo com um sabor mais inesquecível. É maravilhoso saber que, verdadeiramente, houve um Dersu Uzala.
8.5/10
Comentários
Postar um comentário