Deus da carnificina e o sarcasmo diante das nossas mazelas


Dois meninos brigam em um parque. Um deles quer fazer parte do grupo do outro, que não lhe permite entrar. Então, o garoto preterido se vinga acertando-lhe um taco e quebrando-lhe dois dentes incisivos superiores. O incidente motiva o encontro de seus pais com os pais de sua “vítima” para uma discussão a respeito de sua conduta, e compõe o argumento de Deus da carnificina (Carnage, 2011), elogiável produção assinada por ninguém menos que Roman Polanski. O realizador franco-polonês se apoderou do texto originalmente teatral de Yasmina Reza para filmar um quarteto de atores magistrais no limitação de um apartamento e retirar todo o verniz que a civilização procura lançar sobre os instintos humanos mais primitivos. Nos seus enxutíssimos 80 minutos, o filme vai da formalidade ao flagrante da hipocrisia baseado na força da palavra, valendo-se de um evento um tanto prosaico. A cena que o mostra, aliás, é algo difusa, quase um pretexto para a exibição dos créditos de abertura do filme.

Na sequência ao caso fortuito, o público é levado para o interior do apartamento de Penelope (Jodie Foster) e Michael (John C. Reilly), os pais do menino atacado. Ela digita um texto cheio de eufemismos enquanto é acompanhada de perto pelo marido e por Nancy (Kate Winslet) e Alan (Christoph Waltz), responsáveis pelo autor do incidente. Dali em diante, não se sairá mais das quatro paredes que circundam o imóvel, um genuíno microcosmos da frivolidade que opera nas relações humanas, cujos habitantes e visitantes são figuras perfeitamente metonímicas. Durante a escrita daquela espécie de boletim de ocorrência amador, já começam a surgir discretas rusgas entre os personagens, porque Alan discorda do uso do termo “atacar” quando Penelope se refere ao que o filho dele fez contra o dela. Essa simples dissonância de termos (simples só na aparência, vale lembrar) é ponta de um iceberg cuja é emersão é gradual, e revela as pequenas e grandes mesquinharias que residem nos pensamentos do quarteto.

A habilidade de Polanski salta aos olhos em Deus da carnificina, e leva a olhar para trás em sua carreira. Não é a primeira vez que o diretor se vale do confinamento de seus protagonistas para falar sobre medo, hipocrisia e paranoia. Afinal, estamos falando do grande responsável pela Trilogia do Apartamento, da qual se destaca o icônico Repulsa ao sexo (Repulsion, 1965). E, no filme em análise, ele tem à sua disposição um elenco fora de série, capaz de dar conta das várias possibilidades dramáticas de uma autora que não se restringe a trabalhar tipos. O texto é uma adaptação do próprio Polanski em parceria com Michael Katims, responsável pela tradução do texto. Trata-se de um escritor que ainda apresenta um currículo reduzido, que inclui a animação francesa Renaissance (idem, 2006). Transposta para a tela de cinema, cada palavra revela sua grande força, mostrando não somente os verdadeiros caracteres de Penelope, Michael, Nancy e Alan, mas os de toda uma sociedade. É muito provável que a maioria se reconheça em um ou mais personagens, em uma ou mais falas.


Diante de uma obra tão mordaz e pertinente aos nossos dias, é de se estranhar a mornidão com que foi recebida no Festival de Veneza de 2011, de onde saiu com o singelo Pequeno Leão de Ouro. Cada ator entrega um desempenho formidável, levando a crer que foi a escolha perfeita para o papel que representou. E chega a surgir a dúvida: até onde não há um pouco dos próprios intérpretes ali? Até porque eles são parte da engrenagem social, tanto quanto o público que lhes serve de testemunha, ora gargalhante, ora perplexo. Cada vez mais, fica perceptível que o “ataque” do filho de Nancy e Alan foi o estopim para a queda de máscaras entre os quatro personagens, que, pouco a pouco, vão agindo feito crianças que se digladiam. O jogo de acusações fica cada vez mais interessante e, ao longo do filme, as oposições vão se revezando: casal contra casal, marido contra esposa, homens contra mulheres. Sobra espaço para uma série de conflitos, talentosamente condensados na restrição espaço-temporal. Não há inocentes ou culpados ali: a cada minuto, o que mais se sobressai é o instinto, assim como as reais convicções que cada um deles conserva.

Deus da carnificina carrega consigo alguns simbolismos, e o mais marcante deles é, certamente, o vômito de Nancy. Quando ela despeja seus dejetos estomacais sobre preciosidades de Penelope, pode-se lê-lo como uma espécie de saturação da necessidade de se viver sob e égide da correção política, sob o cabresto da palavra. Essa caminhada no fio da navalha é um preço alto a se pagar e, diante da tal cena, surge uma sensação muito parecida com a de alívio, ainda que ela venha misturada com certo constrangimento, tamanha é a força das convenções sociais, as mesmas que provocam o remorso de Nancy imediatamente subsequente. Não se pode esquecer, ainda, o passado do diretor. Impedido de entrar nos EUA por conta do episódio de estupro pelo qual foi tardiamente condenado, ele filmou a película em solo parisiense, embora seja dito que a trama seja ambientada em Nova York. Então, de certa forma, as ironias de Nancy, Alan, Penelope e Michael são ironias de Polanski também, que já vinha travando um embate com o cinismo em seu longa anterior, O escritor fantasma (The ghost writter, 2010). Em Deus da carnificina, ele triunfa com base no minimalismo, sob vários aspectos, e faz de um texto alheio mais uma reflexão autoral sobre uma teia de camuflagens contemporâneas.

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