As bicicletas de Belleville e os ângulos inusitados de um realizador


A estilização é uma característica flagrante e maravilhosa de As bicicletas de Belleville (Les triplettes de Belleville, 2003), a estreia de Sylvain Chomet como diretor solo de animação. Em tempos de ênfase cada vez maior dos estúdios em grandiloquência e empáfia arrasa-quarteirões, o francês opta pela tradição e investe em uma história cativante e sincera sobre o mundo em que vivemos, sem abrir mão de imprimir um toque todo pessoal ao olhar que lança sobre seus personagens. Seu foco está na relação adorável e difícil entre uma avó e seu neto, bem como nas decorrências das tentativas da senhorinha de agradá-lo. Champion (um sugestivo nome para um garoto desmotivado) não se importa com quase nada à sua volta, o que deixa sua avó penalizada. Um dia, ela lhe compra um cãozinho, o gorducho Bruno, que alegra o menino durante um tempo: em seguida, ele já perde o interesse pelo animal.

Sua empolgação genuína vem com as bicicletas, o que faz sua avó, que atende pelo nome de Madame Souza, ter a ideia de comprar-lhe uma, e ele passa a se dedicar integralmente ao ciclismo, treinando de modo quase insano para ser o melhor competidor no esporte a fazer jus ao seu nome. A progenitora é sua maior entusiasta e quem mais lhe impulsiona a rumar à perfeição, impondo-lhe uma rotina de alimentação regrada e pedaladas intermináveis. Com tanto empenho, ele acaba se inscrevendo para a Volta da França, a disputa mais importante do gênero no país, que compreende um percurso de mais de 3000 km por terrenos acidentados e montanhosos. É nessa longa jornada, antes de tudo um exercício hercúleo de autossuperação, que Champion se perde e cai em armadilhas de gente mal-intencionada que quer vê-lo fora do páreo. A razão de ser de Madame Souza é o garoto, então ela parte com Bruno à sua procura e conhece a cidade presente no título do filme, uma tremenda ironia de Chomet, perceptível a quem coloca os olhos sobre ela.

A tal cidade é a maneira pela qual o diretor critica toda uma visão de mundo capitalista e a crescente descartabilidade de seres humanos presente nesse sistema. O modus operandi empregado por Chomet é duro e, ao mesmo tempo, discreto, o que pode fazer que algumas de suas alusões passem despercebidas aos olhos de boa parte do público. A procura de Madame Souza é um pretexto, por assim dizer, para um trajeto de observação criteriosa da natureza humana e de suas teias relacionais, o que eleva As bicicletas de Belleville ao patamar das animações reflexivas, equiparável a preciosidades da Disney, do porte de Wall-E (idem, 2008). Nesse sentido, torna-se uma obra de apelo também para adultos, que saberão aproveitar uma sessão sua para vislumbrar ricos detalhes de composição psicológica de seus protagonistas, traçados vigorosa e pantomimicamente, numa quase ausência de diálogos que potencializa o pulsar reverberante da arquitetura imagética. Delicadamente, Chomet escreve uma carta de amor aos valores familiares e retoma a tradição como um veículo para a expressão de sentimentos que, para muitos, soam datados, como a cooperação, o afeto e o bem querer.


Não como negar, ainda que As bicicletas de Belleville exprima o quanto o realizador é tributário da lenda Jacques Tati. A comédia física e o humor silencioso e melancólico são os índice principais dessa filiação declarada. Ele compõe tipos, mas não os achata, e nos faz enxergar a humanidade residente nos corações de Madame Souza, de Champion e, quiçá, de Bruno, tão apegado ao seu dono que é o reforço ideal para a busca da avó do garoto. Ela também encontra outras aliadas valiosas para sua peleja, as trigêmeas cantoras mais famosas dos tempos antigos na música francesa, cheias de hábitos muito inusitados, como a adoração por carne de sapo. É com elas, aliás, que o diretor relê uma das cenas mais emblemáticas de Magnólia (Magnolia, 1999): a famigerada chuva de sapos da obra-prima de Paul Thomas Anderson. Na sua visão, o acontecimento ganha tintas cômicas e demonstram a capacidade dialogal e inventiva do cineasta.

Essa é a sua estreia no longa-metragem de animação, mas ele já apresentava outros trabalhos em sua carreira ao conceber As bicicletas de Belleville. Sua estreia se deu com A velha senhora e os pombos, e lhe proporcionou láureas como o BAFTA e o Grande Prêmio do Festival de Annecy, inteiramente dedicadas a produções do gênero (que Brad Bird não leia esse parágrafo...). Chomet contou com a colaboração de Nicolas de Crécy para o curta, e a parceria entre ambos acabou mal, pois Crécy o acusou de plágio depois de conferir o resultado final de As bicicletas de Belleville, uma polêmica que segue em aberto. A queixa surgiu pelo fato de o visual do filme ser muito semelhante ao trabalho precedente de Crécy, Le bibendum celeste, feito em 1994. Talvez Crécy tenha razão, mas isso não dilui os méritos do filme, feito para guardar no coração e deixar pensando ao final de sua projeção, pelo que traz de inconclusivo em seu desfecho. Na caminhada um tanto errática e sentimental de Madame Souza em busca de seu neto, e no amor que os une, a obra faz verter lágrimas e também as enxuga.

Comentários

  1. Eu discordo, Gustavo. Existem muitas referências ao mundo adulto no filme.

    Abraço

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  2. GuStAvO fotos, O FILME, EMBORA SENDO UMA ANIMAÇÃO, É MUITO FORTE E NÃO RECOMENDÁVEL À CRIANÇAS; RECOMENDO QUE ASSISTA ANTES DE COMENTAR.

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