Meia noite em Paris, uma celebração genuína à arte


O deleite cinéfilo, em todas as instâncias, está assegurado diante de uma sessão de Meia noite em Paris (Midnight in Paris, 2011), mais um filme da profícua carreira de Allen Stewart Könisberg. O septuagenário nos presenteou novamente em seu trabalho do ano corrente, trazendo uma trama entusiástica e bem costurada sobre vida, amor, paixão e arte, temperadas com seu humor arguto e contumaz. E a tal trama tem como fio condutor a figura simpática – à moda alleniana – de Gil Pender (Owen Wilson), um roteirista de cinema que sabe o que escrever para ser abarcado pela massa de espectadores, mas que decidiu se atever na escrita de um romance. Esse elemento é uma das prmeiras recorrências do diretor a surgir na tela. Vários outros filmes seus trouxeram a figura de um artista da palavra em crise e mergulhado em frustrações, de Desconstruindo Harry (Desconstructing Harry, 1997) a Interiores (Interiors, 1978), passando inclusive pelo recente Você vai conhecer o homem dos seus sonhos (You will meet a tall dark stranger, 2010).
Mas a presença de um novo personagem escritor em cena é apenas o ponto de partida da proposta do diretor de enredar seu público em uma viagem atemporal pela Paris de seu olhar apaixonado. Seguramente, a capital francesa tem lugar cativo no imaginário ocidental, e Allen não destoa da maioria ao elegê-la como cenário absoluto para as (a/des)venturas do protagonista. De certa forma, ao deixar temporariamente sua amada Nova York de lado, o realizador deu o posto de coadjuvante de luxo ao reduto europeu da arte por excelência. Em muitos momentos, aliás, a cidade chega a roubar a cena dos demais personagens, como no deslumbrante plano de abertura, em que ele abriu mão de iniciar imediatamente o filme com seus créditos famigerados para apresentar um panorama extasiante da Cidade Luz, antonomásia mais do que cabível para um lugar que respira paixão e encantamento. Esse plano consome quase cinco minutos da projeção, preparando o terreno para as várias peripécias da narrativa, que respondem pela falta de fôlego dos amantes das referências habitualmente feitas pelo diretor.
O grande achado da trama de Meia noite em Paris é o cruzamento de tempos que passa a ocorrer quando o elemento fantástico invade o transcorrer do enredo. Gil, alheio às futilidades de sua noiva Inez (Rachel McAdams, surpreendentemente ótima), caminha a esmo por Paris, atividade que, por si só, tem sua parcela de atratividade. Numa dessas suas caminhadas, com vistas a se recuperar de um novo ataque de pânico – moléstia comum a outros seres criados pela imaginação alleniana – irrompe diante de seus olhos um carro antigo cujos passageiros o convidam amistosamente a um passeio noturno. É a partir dali que Gil viverá dias de enlevo, por passar a ter contato com figuras icônicas de sua formação, de que ele é fã confesso. É interessante recordar que, quando da exibição do filme no 64º festival de Cannes, o cineasta admitiu em entrevista que o título da obra veio antes mesmo de sua sinopse. Ele não tinha a mais vaga ideia do que pudesse acontecer à meia noite, até que lhe surgiu na cabeça a proposta do tal carro que conduz Gil de volta ao passado. Então, acompanhar os passos seguintes do protagonista passa a ser um divertido jogo de referências históricas importantes, que desfilam pela tela com indefectível garbo e frescor. Estão lá, surgindo um após o outro, Ernest Hemingway, Gertrude Stein, Francis e Zelda Fitzgerald (os primeiros a aparecer), Salvador Dalí, vivido impecavelmente por Adrien Brody e até mesmo um certo Luis Buñuel. É notável a semelhança física dos intérpretes com as figuras que representam. Brody, por exemplo, tornou-se o próprio dali em sua aparição fugidia na trama, além de incorporado um sotaque espanhol cheio de graça, vitalidade e veracidade. Suas divagações diante das ideias apresentadas pelos outros amigos de bar são, no mínimo, estapafúrdias, rendendo um momento de gostosa gargalhada quando de suas citações a um rinoceronte.
É fato que o filme agradou em cheio a crítica e o público, proporcionando, em certos termos, uma reconciliação entre esses dois polos e Allen, algo que não acontecia efetivamente desde o lançamento de Ponto final (Match point, 2005), por acaso, no mesmo festival de Cannes. Meia noite em Paris traz uma fusão interessante entre apego à arte e certa ingenuidade salutar. O subtexto trazido pelo diretor é bastante simples e eficiente: a evasão espaço-temporal não é suficiente para a resolução de qualquer problema. Gil começa o filme com várias idealizações, como o seu desejo de viver eternamente em Paris sob a chuva, um contexto no qual sua noiva não vê a menor graça. Para além disso, o aspirante a escritor acredita inicialmente que sua felicidade esteja circunscrita aos anos 20, certeza que se vai dissolvendo depois de alguns encontros com a bela Adriana (Marion Cotillard), uma das amantes de Picasso, um dos pintores que ele conhece em uma de suas viagens no tempo. Para a jovem, os mesmos anos 20 não têm o glamour, a beleza e a fecundidade do Oitocentos, e o roteiro nos oferece aqui um intrincado jogo de entrada no passado do passado, como uma materialização do processo verbal descrito pelo pretérito mais-que-perfeito: Gil e Adriana atravessam a fronteira do tempo e chegam ao encontro de nomes como Toulouse-Lautrec – vivido por outro ator muito parecido com a figura que retrata -, que se lamentam de sua época e acreditam ser muito melhor se tivessem nascido e vivido no Renascimento.



Calcado nesse delicioso mise en abîme bem pensado, o diretor nos fala de uma eterna insatisfação do homem com sua condição. Não é novidade alguma em se tratando da obra do diretor, que sempre está em busca de novos tratamentos para sua estética simples e fundamentada na palavra. Gil Pender lembra bastante os personagens de Allen quando jovem, em seus primeiros filmes, como o Isaac Davis de Manhattan (idem, 1979). Aliás, pode-se dizer que Meia noite em Paris é uma versão daquele filme para a capital francesa. Allen filma com o mesmo entusiasmo com que delineou seu retrato de sua amada ilha, reservando para Owen Wilson a missão de encarnar seu alter ego. O ator imprime uma vitalidade benvinda ao papel, mostrando que sabe ser relevante quando quer, e para além de suas parcerias acertadas com Wes Anderson, diretor dos filmes em que ele mostra uma capacidade interpretativa verdadeiramente positiva. Há quem diga que seu protagonista tenha ficado sem identidade própria, por incorporar demais os trejeitos do diretor em sua porção ator, mas uma breve comparação com o personagem de Kenneth Brannagh em Celebridades (Celebrity,1998), por exemplo, evidencia que o ator inglês esteve muito mais preocupado em “ser” Allen que Owen Wilson. De qualquer modo, é quase um pressuposto ser um sujeito com pequenas neuroses e algo misantropo para figurar como protagonista de um filme do diretor. Essa característica recorrente dos seus filmes não encontra adesão de uma parte considerável do público, mas há quem se identifique com esse tipo de construção de personagem, que, em última instância, é uma espécie de atualização do herói clássico, que se vê diante de uma série de inseguranças e não esconde suas fraquezas e pequenas vilezas de quem está ao seu redor.
Ao longo de seu transcorrer, Meia noite em Paris se configura como uma deliciosa ode ao solo parisiense, com sua transpiração artística e suas entrelinhas que evidenciam a impossibilidade de se voltar atrás no tempo. Há que se prosseguir sempre frontalmente no que tange a essa grandeza. E essa constatação, no fundo, é bastante agradável, pois oferece a constante possibilidade de recomeço e transformação. Em meio às reflexões bem pontuadas do roteiro, o filme também traz coadjuvantes de excelência, além dos que já foram apontados anteriormente. Como não se render ao talento de Kathy Bates, por exemplo? E como não amar a composição de Corey Stoll para Hemingway? E como não adorar odiar o pedante personagem de Michael Sheen? Como de hábito, a direção de atores de Allen é esplêndida, e sua trama bem arrematada com soluções interessantes prende a atenção minuto a minuto, deixando a forte sensação de se estar diante de uma celebração genuína à arte.

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