Na estrada e os arroubos febris de uma geração atordoada


Na estrada (On the road, 2012) parte do romance homônimo de Jack Kerouac para narrar o cotidiano de jovens sem rumo, filiando-se, assim, a uma tradição de filmes sobre a fase da vida em que a necessidade de descoberta e autoafirmação parece mais intensa do que nunca. Sob a batuta de um Walter Salles em sua segunda experiência com um elenco internacional – depois do fracassado Água negra (Dark water, 2005) – o filme se vale das experiências lisérgicas e existenciais de um autor que decidiu transpô-las para a literatura. Salles, por sua vez, fez suas próprias escolhas a decidir verter o conteúdo do livro para o ambiente cinematográfico. O resultado é um filme capaz de despertar interesse e envolvimento por parte do espectador, mas que também apresenta tempos mortos algo enfadonhos e duração além do que poderia ter. São mais de duas horas de delírios juvenis, de procuras insistentes por fortes emoções e testes dos próprios limites.

Encabeçando o elenco, Sam Riley e Garrett Hedlund dão vida, respectivamente, a Sal Paradise e a Dean Moriarty. O primeiro é um aspirante a escritor que começa a trama com 18 anos de idade, que conhece o segundo em suas andanças. Em pouco tempo, os dois se tornam amigos inseparáveis, dividindo segredos, anseios e inspirações. E a espinha dorsal de Na estrada é justamente esse relacionamento de altos e baixos que se desenvolve entre eles ao longo de alguns anos. Pelas suas vidas, passam jovens igualmente desajustados e à procura de seus lugares no mundo, como Marylou (vivida por uma irritante Kristen Stewart), a namorada saidinha de Dean, que também não hesita em embarcar em suas experiências, que envolvem, basicamente, o prazer sexual. Com isso, o longa aborda tabus relacionados ao assunto e apresenta personagens despidos de boa parte dos pudores, no melhor estilo “faça amor, não faça guerra”. Desse trio, contudo, Sal é o menos desinibido, o que o leva a desistir de um ménage a trois no meio do caminho.

Conforme indicam seu título e sua sinopse, Na estrada é o cruzamento entre dois subgêneros que já renderam numerosos exemplares: o retrato da juventude e o road movie. Costumeiramente, ambos dão certo abordados separadamente mas, como já se disse anteriormente, não é o caso do filme de Salles do começo ao fim. Ao se propor a apresentar um itinerário longo das vidas de Sal, Dean e de quem mais passa pelas suas vidas, o diretor acabou incorrendo no incômodo paradoxo da prolixidade vazia. É como alguém que fala, fala e fala quando poderia dizer as mesmas coisas com bem menos palavras. Em termos mais pragmáticos – por mais que o adjetivo raramente encontre uso na arte -, Na estrada poderia durar cerca de meia hora a menos, o que contribuiria decisivamente para amplificar a sua fluidez. Da maneira como foi concebido, se início atraente vai se dissolvendo, e é mais difícil voltar a se interessar pela história depois que boa parte da empolgação se esfria.


Cabe ressaltar que houve várias tentativas anteriores de levar o romance de Kerouac para as telas. O próprio Salles informou que foram escritos 15 roteiros até que se chegasse a uma versão satisfatória, que é a que foi filmada. Aliás, a escrita do roteiro foi diretamente influenciada pela cópia do manuscrito da obra, à qual o roteirista José Rivera, que desempenhou a mesma função em Diários de motocicleta (idem, 2004). Talvez valesse a pena escrever uma 16ª versão para o texto, a fim de eliminar certas gorduras incovenientes, que pouco ou nada acrescentam a trama principal. Por outro lado, em um filme de estrada e episódios evanescentes, sobra espaço para várias participações especiais. Entre elas, está Kirsten Dunst, na pele de uma das mulheres da vida de Dean, com quem ele não consegue manter um relacionamento pautado pela estabilidade, e Viggo Mortensen, praticamente um figurante cujo papel pouco influencia na jornada dos protagonistas. Sobra espaço até mesmo para um personagem inesperado de Steve Buscemi. É como se Salles quisesse trabalhar de qualquer maneira com esse elenco e não importasse muito de que maneira.

Comparações são potencialmente perigosas, mas é quase irresistível recorrer a elas quando se pensa em alguns filmes sobre jovens que antecederam Na estrada. Talvez seja forte afirmar, porém o filme definitivo sobre a inquietude juvenil já foi feito, e trata-se de Os sonhadores (The dreamers, 2003), que, de quebra, oferece uma maravilhosa inserção do discurso metalinguístico, do qual o filme de Salles não tem sequer a sombra. Em termos de despudor, Na estrada também perde para o longa de Bertolucci, assim como para E sua mãe também (Y tu mamá también, 2001), outro retrato caloroso dos arroubos de paixão e fúria que pautam os anos da juventude. Sem falar na beleza plástica e no ardor vital de Amantes constantes (Les amants réguliers, 2005). Perto desses exemplares, Na estrada soa muito mais como tentativa, ainda que sua base seja um dos 100 melhores livros em inglês entre 1923 e 2005, segundo eleição da revista Time, e um dos ícones literários da chamada geração beatnik. E o périplo fervilhante de seus rapazes e moças, com suas experimentações multissensoriais e seu descompasso, tende a apontar para um horizonte apagado.

Comentários

  1. Vi um comentário deste filme em um canal fechado. Mas faltava mesmo era lê algo sobre ele e, agora, vejo aqui. Excelente texto, Patrick Corrêa. Irei, sim, conferir. Obrigado pela visita no Sapere Aude e pela palavras, também. Um abraço...

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  2. Muito obrigado, Maxwell!
    Seja sempre bem-vindo ao meu blog e espero que você veja o filme em breve para formar sua opinião sobre ele.

    Abraço!

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