A corrosão pela culpa visitada em A garota desconhecida

Esqueça a trilha sonora que potencializa o drama. Em A garota desconhecida (La fille inconnue, 2016) não existe espaço para som que não sejam diegéticos, e eles pulsam com tanta ou mais intensidade que melodias de vozes ou instrumentos. Quem está familiarizado com o estilo dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne sabe o quanto essa afirmação é verdadeira, e a fidelidade a esse tipo de cinematografia se traduz em mais um exemplar potencial de sua carreira. Vinte anos depois de terem estreado com A promessa (La promesse, 1996), eles chegaram ao oitavo filme tocando no tema da culpa e do arrependimento, que ganha corpo em Jenny Davin (Adèle Haenel). Médica nos primeiros anos de exercício da profissão, ela gosta de seguir à risca certos códigos de conduta, o que gera faíscas em sua relação com o estagiário Julien (Olivier Bonnaud). É justamente em decorrência de um desses conflitos que surge o impasse da narrativa. 

Acontece que Jenny nega atendimento a uma paciente porque ela aparece na porta uma hora após o fim do expediente: é a tal garota desconhecida do título. O ato repercute em sua consciência depois de uma notícia trágica envolvendo a jovem, e aí começa o périplo da médica, em uma jornada que guarda semelhanças com a da protagonista de Dois dias, uma noite (Deux jours, une nuit, 2014), obra pregressa dos realizadores, um austríaco (Jean-Pierre), outro belga (Luc). À procura de informações que esclareçam fatos sobre a vida dessa garota, Jenny depara com muitas respostas negativas e ocultações, dificultando a montagem de um quebra-cabeça que toma seus dias. É um dos senões apresentados pelo roteiro: ela não tem qualquer vida social, família ou distrações que possam ocupar a mente, e se torna obcecada - por vezes, até mesmo chata - por entender quem é a pessoa que a buscou em vão. Será que não haveria ao menos uma amiga para compartilhar essa inquietude? Nem mesmo seus colegas médicos têm muita participação para travar alguns diálogos com ela sobre o caso.

Esses potenciais informantes, aliás, são participações especiais de atores caros aos diretores. Em momentos diferentes, surgem na tela Fabrizio Rongione, Olivier Gourmet e Jérémie Renier, este último com mais aparições na pele do pai de um dos pacientes de Jenny. Os outros dois vivem um médico veterano e o filho de outro paciente, coadjuvantes de luxo que preenchem a lista de características do modus operandi dardenniano. É pena que todos sejam presenças tão ligeiras, tendo em vista o talento de cada um. O filme acaba sendo mesmo de Haenel, que está longe de ser um estreante, mas ainda aparenta um rosto novo porque a maioria de seus papéis não tem sido de destaque. Raramente filmada de perto, sua Jenny é dominada por um senso de ética e justiça que tem dificuldades de atender, e a jornada dramática na qual se embrenha lhe rouba os sorrisos. Em apenas uma passagem ela abandona rapidamente o semblante sisudo, ao receber uma notícia positiva do (a essa altura) ex-estagiário.


A plateia de Cannes recebeu A garota desconhecida com alto nível de má vontade: emitiram vaias durante a sessão, um claro exagero e uma irresponsabilidade que não deve servir de parâmetro para a qualidade de qualquer filme. Vale lembrar que um certo Pulp fiction (idem, 1994) também foi alvo desse tipo de gritinho... Mas há que se notar o desprestígio antitético lançado aos irmãos, que já faturaram duas vezes a Palma de Ouro, feito raro entre os cineastas (Michael Haneke, Shohei Imamura e Ken Loach são os outros). O gesto, entretanto, veio da ala mais jovem do público, enquanto os críticos com anos de estrada aplaudiram discretamente a projeção, mas parece ter havido consenso de que o longa está aquém dos anteriores da dupla. Um breve olhar para o passado confirma a tese, mostrando que apenas O silêncio de Lorna (Le silence de Lorna, 2008) é mais fraco do que esse. Ainda assim, A garota desconhecida tem seus méritos e vaias cabem a filmes de outro naipe. 

O que talvez tenha faltado aqui seja a capacidade de surpreender ou, principalmente, gerar empatia, habilidade muito bem demonstrada pelos Dardenne tanto em termos de direção como de roteiro - eles sempre se baseiam em textos próprios. A jovem age de modo questionável em mais de uma ocasião. De qualquer modo, o humanismo (ou humanitarismo, para ser mais específico) que emana de Jenny é um significativo puxão de orelha em tempos nos quais a noção de responsabilidade com o outro anda cada vez mais esgarçada. Quem está disposto a se envolver com um drama que não seja o seu? Só por se debruçar em cima dessa indagação A garota desconhecida já merece o seu tempo e a sua atenção. Um outro porém é o desempenho de Haenel, um tanto gelada em sua composição, e acaba sendo irresistível comparar com o carisma absurdo de Marion Cotillard no já mencionado Dois dias, uma noite. Uns anos a mais de experiência teriam feito diferença? Mais velho dos irmãos, Jean-Pierre tentou sintetizar: "Fazemos um cinema simples visualmente, sem adereços, sem excessos de luz, para mostrar que ainda é possível crer na esperança".

7.5/10

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