Maridos e esposas: o epicentro das crises conjugais

Os bastidores de Maridos e esposas (Husbands and wiwes, 1992) se tornaram mais famosos do que o filme em si, já que se trata da última parceria entre Woody Allen e Mia Farrow, a qual se encerrou de modo traumático e tingiu de escarlate o currículo pessoal do diretor. O episódio, porém, pode ser deixado de lado no contato com o longa, que está impregnado de um discurso abrasivo sobre as agonias da vida a dois, em um diálogo explícito com Cenas de um casamento (Scener ur ett Äktenskap, 1973), obra máxima de Ingmar Bergman, ídolo de Allen, acerca do mesmo tema. Tudo começa com o que parecia mais um simpático jantar na casa de Gabe (Allen) e Judy (Farrow). Eles estão recebendo Sally (Judy Davis) e Jack (Sydney Pollack) para colocar a conversa em dia e logo são surpreendidos quando o casal, depois de uma breve hesitação, anuncia que está se separando. A notícia cai como uma bomba sobre o colo de Judy, que simplesmente não admite o fato que o casamento de seus amigos chegou ao fim. Para ela, não há mais clima algum para jantar, enquanto Gabe procura tranquilizá-la com o auxílio dos próprios Jack e Sally, que repetem insistentemente que foi uma decisão acordada e pacífica.

O transtorno que sobrevém a partir de então sobre Judy, pouco tempo depois, afetará seu casamento com Gabe, levando-a a questionar sua felicidade ao lado do marido, como quem reavalia cada ano passado e tenta se descobrir se tudo realmente valeu a pena. Se antes parecia haver segurança e a certeza de uma união inquebrável, agora Judy é só dúvida, e coloca Gabe contra a parede em ocasiões cotidianas. Ele, por sua vez, exibe sua porção mais desconfiada, como quando decide tentar novamente fazer sexo com a esposa e, depois de pedir-lhe que não esqueça o diafragma, pergunta-lhe se ela seria capaz de fingir tê-lo colocado para que engravide. A insinuação é altamente ultrajante para Judy, e o ensaio de romance daquela noite se desfaz abruptamente. É assim, entre desconfianças e verdades indigestas lançadas na face, que Maridos e esposas revela um Allen desencantado, que flagra as pequenas e grandes desavenças porque passa um casal, levando à reflexão constante de que estar junto é, antes de tudo, compartilhar neuroses.

Habituado às comédias, à época deste filme o diretor já tinha demonstrando que também é capaz de conduzir um bom drama e, talvez, o auge da sua maturidade no tratamento de histórias sob o viés da seriedade esteja aqui. Allen propôs um novo diálogo com o cinema europeu, de onde provêm obras maravilhosas a respeito dos relacionamentos amorosos, e novamente fez da palavra o seu reino. Sua referência mais imediata, como em tantos outros filmes seus, também é sua própria biografia, e a semelhança de Gabe e Judy com ele mesmo e Farrow é assombrosa. Como se sabe, durante as filmagens do longa, a atriz descobriu fotos comprometedoras da enteada deles entre os objetos pessoais de Allen, o que fez vir à tona o caso, de certa forma incestuoso, que os dois vinham mantendo. Continuar filmando foi uma decisão duríssima para Farrow, que pensou seriamente em desistir de seguir no filme. E o fracasso progressivo do casamento de Gabe e Judy passou a espelhar o fracasso de seu próprio casamento com Allen, traduzindo-se em uma desconfortável, para dizer o mínimo, imitação da vida à arte.


Um recurso potente do qual o realizador lança mão é a câmera trêmula, que corrobora a sofreguidão com que o quarteto busca resolver suas querelas sentimentais, sendo sempre rondados pelo erro. Nenhum deles está isento de cometer seus enganos e seus deslizes, e exalam humanidade, sobretudo pelos defeitos que carregam consigo. A inquietude das lentes de Allen é uma espécie de materialização do desassossego das almas de Gabe, Judy, Sally e Jack, estrelas cadentes de destinos incertos e harmonias fugazes. Não há lugar seguro quando se trata do amor. Sob a ótica do cineasta, a incerteza paira o tempo todo sobre os casamentos e aprender a conviver com ela parece muito mais viável do que tentar suplantá-la, uma visão passível de ser contrariada, mas que traz consigo alguma validade. Os momentos de humor da narrativa são raríssimos. Em Maridos e esposas, predominam o sufocamento e a opressão: estamos falando do mesmo Allen que já havia dirigido Interiores (Interiors, 1978) e, anos mais tarde, conceberia Ponto final (Match point, 2005) e O sonho de Cassandra (Cassandra’s dream, 2007), outras de suas obras que deixam um nó na garganta.

A temática das relações amorosas é uma das recorrências da filmografia de Allen, e ele já experimentou abordá-la cômica e tragicamente. A depender do espectador, é possível ficar com uma, outra ou ambas as alternativas, sendo a terceira delas a mais interessante, já que a vida a dois reserva tanto momentos de alegria quanto de tristeza e desconforto. Apenas quatro anos depois de Maridos e esposas, Allen trouxe à existência Todos dizem eu te amo (Everyone says I love you, 1996), que também assinala a inconstância humana no campo das paixões românticas, carregando no bom humor e mostrando as incoerências de que o coração é capaz. No que se refere à sua parceria derradeira com Farrow, porém, é a dor o ingrediente crucial, e a sinceridade dos diálogos exprime o quanto os laços matrimoniais, com o transcorrer do tempo, podem afrouxar a ponto de se romperem, e o olhar comum pode diagnosticar o fato como irreversível. A grande ironia do longa está na inversão da gangorra sentimental do quarteto protagonista. A certa altura, Jack e Sally se dão conta de que existe uma relação de dependência entre eles e reatam seus laços, ao passo que Gabe e Judy rompem os seus, para, mais adiante, buscar retomá-los. Assim, ambos experimentaram a crise e o abandono e deixam claro para o público que as relações amorosas são junções de neuroses e que viver a dois é uma empresa hercúlea.


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